quinta-feira, outubro 25, 2012

Retorno

"Mãezinha, cansei-me de pessoas."

Ele andava vestido de lágrima e a mãe não conseguiu recuperar-lhe nenhuma palavra, nem uma, até que deixasse de respirar. É ingrato para uma mãe, mulher que põe um filho no mundo, luta por ele e nunca o possui. Vê que o filho se cansou de pessoas por deixar que outros o possuíssem, ou a sua sombra, ou o seu fantasma.

Deixou-se hidratar de lágrima e ali ficou, em fotossíntese. A esperança era tornar-se árvore, que antes já tentara usar as pernas para fugir e viveu muito, mas piorou. Agora que fossem pernas de raiz, esbranquiçadas, à procura de húmus.

Mas as suas pernas escuras queimavam-se sempre que as enfiava na terra amarelada. Não tanto como no deserto, é certo, mas queimavam. A terra já se divorciara da água há algum tempo. E ele só chorava frente à mãe e ao Deus a que rezava. Quando teve de atravessar o deserto foi o tempo todo a falar com Deus. Quase dois anos, atravessava o deserto, trabalhava na cidade, chegava ao mar e traziam-no de volta para o deserto, onde voltava a seguir os cadáveres para ter a certeza do caminho até ao paraíso. 

E um dia lá chegou ao paraíso, foi preso, viveu na rua, depois numa cave, trabalhou sempre à noite e lá conseguiu pagar um quarto. Ali não passava fome de entranhas mas sim fome de coisa humana. Fazia o que podia para esquecer: bebia, alucinava-se ligeiramente, olhava infinitamente a estrada, gastava o que ganhasse no jogo. Vivera melhor em África, mas não podia regressar de mãos vazias. Faltava-lhe a mãe, porra. Era a mãe que conseguia inventar sempre o que pôr no prato de cada um dos nove filhos, mesmo sem ter nada. Nem que fosse pão com farinha de grãos cozida, jejum permanente, mas não lhes ensinou o significado de fome. Ensinou-os a não se habituarem a comer.

Ele aprendeu a fome e o hábito na Europa. Diziam-lhe sempre que ele era do país dos que tinham fome, coitadinho. E ele queria abaná-los e dizer que no seu país havia mais que fome, que a crença dos coitadinhos não os ajudava, que o dinheiro que lhes mandavam para a comida ia para as armas e que as armas sempre em riste eram o verdadeiro problema. Um problema que vinha da luta para mandar mais e ter mais terras que o primo do lado, do norte ou do sul. Havia sempre problema. Mas ali ele tinha sido mais feliz.

Juntou uns trocos e voltou. Queria dar à mãe o que conseguira, essa mãe cujo colo tanto lhe faltou, passou tantas horas a pensar no seu cheiro a farinha e malagueta para acalmar os tempos piores. Mas eram poucos trocos e quem mais lá estava desprezou-o. Tinham investido muito na sua viagem e ele só trazia cabelos brancos, desânimo e três tostões. Envergonhou-se. Não era este o seu sonho, mas também já não sabia o que era sonhar. No deserto, enquanto falava ininterruptamente com Deus, passou à descrença na vida boa; só queria sobreviver. Sempre e a cada momento. Pensar demais fazia mal, sonhar e ver o sonho-morto ainda pior. Preferia olhar o tempo, gozar com ele, passá-lo e vitoriar-se disso. Até que se cansou e voltou para África.

E ninguém o aceitou, só a mãe. Mas a mãe diluía-se nas suas lágrimas, ela que também se fartara de pessoas, mas não dos seus filhos. Ela que lhe contava história após cantiga para o animar - mesmo no sentido de lhe voltar a dar alma -, mas há voltas que conduzem mesmo ao cansaço profundo. Ele cansara-se de pessoas. Viveu o resto do tempo a olhar o sol pôr-se na terra amarela onde as árvores já não vingavam. E olhava o tempo, gozava com ele, passava-o sem que conseguisse vitoriar-se de coisa alguma.