domingo, maio 27, 2012

Gulliat e o meu moró

Porque os cães também ocupam um lugar muito importante na memória das pessoas. Até daquelas que nunca tiveram um cão, como eu. E aqui, mais uma vez, poderia contar um sem-número de histórias. Aprender a andar agarrada à cauda do Leão, fazer de conta que a Afrodite era minha, fazer de lobo com o Príncipe, dormir com o Rollie como cobertor, receber a patinha da Maria como pedido de desculpa por me ter ladrado, ser recebida pela Kika como se fosse a raínha do quintal... Mas nas restantes não aparece o meu moró ("morosó de las minhas bideirinhas, de los meus coraçons sagrados de lo bu, muah! 'té 'manhã, moró!"), e dado o carácter imbatível deste título, conto uma história do Gulliat.

Nos idos de 1993, pelos meus 7 anos, fomos a França. O que agora é uma viagem rápida de low cost, na altura era uma viagem longa de Citröen AX, repleta de estações e apeadeiros. E creio que nunca saberei quão mais longa se tornava com a minha questão perene - "Quantos quilómetros faltam?" - desde a primeira curva até estacionarmos o carro de vez. Fomos visitar a família emigrante em França, com direito a campismo em Saint-Jean-de-Luz, Disney em Paris, Parc Astérix em Plailly, Futuroscope em Poitiers... Dá para imaginar?

Foi uma viagem inesquecível. Tivemos direito a tudo: calor alucinante que nos fazia atravessar muitas vezes a porta de água do Asterix, chuva diabólica nos jardins de Versailles, trovoada que parou o simulador do Futuroscope na posição em que o senhor ia a cair do comboio, ardor febril de uma picada de abelha e de uma bola-de-berlim estragada, e nada, rigorosamente nada, escureceu a deliciosa memória desses dias. Tivemos alguns almoços e jantaradas com família e amigos que não falavam minimamente a mesma língua que eu. Nessas alturas falava com os cães, ou então entretinha-me sozinha a cantarolar a música do parque de telecomunicações da Disney, que me fez chorar de alegria pela primeira vez.

Se a memória não me engana, nos últimos dias de viagem fomos todos para a casa do bosque, onde vivia uma prima. Os morós e os tios de Sintra também lá estavam, e éramos imensos para o espaço incrivelmente pequeno daquela casa. Mas cabíamos todos, como sempre, nesta família. O habitante mais fascinante era o Gulliat. Substancialmente maior que eu, era um pastor alemão adulto, bem ensinado, e conseguiu em poucos minutos tirar-nos o medo de bixos daquela envergadura.

- Gulliat, assis toi.
E ele sentava-se, obediente à dona, que nem tinha de o repetir. Por vezes deitava-se, suspirava e chorava dois segundos, para que percebêssemos que não se importaria por nada deste mundo de participar connosco na refeição. A dona abria os olhos na sua direcção, ele punha a pata sobre o focinho e ficava em silêncio.

A dona era uma pessoa muito assertiva e pragmática. Em dia ruim, levava o mundo à frente - e, mesmo assim, conseguia chegar a horas ao trabalho. Tivemos a honra de presenciar um desses dias, no qual a chave ficou presa na porta, do lado de fora, quando ia a sair de manhã. O Gulliat tinha uma casota bem fornecida, designadamente de ferramentas. A dona foi ter com ele, pegou num martelo, martelou a fechadura até cair, entrou em casa, pegou numa rolha e colocou-a no lugar da fechadura.

- Gulliat, la maison - e ele ficou a guardar a casa, obviamente, e ninguém tentou entrar.

No último dia, o meu moró foi brincar com o Gulliat. O moró lançava uma bola pequenita e o Gulliat apanhava-a, ora no ar ora na terra, e voltava a trazer para que continuasse o jogo. Corria, saltava e esperava com as patas dianteiras no chão e as patas traseiras esticadas, a desafiar o moró, que se ria com satisfação.

As malas já estavam todas nos carros e o Gulliat decidiu incluir outros parceiros na brincadeira. Levou a bola uma vez a cada um que partiria. Não perdia o fulgor em cada viagem; levava a bola, pedia que a lançasse, recolhia-a em movimento, corria de volta, levava ao seguinte...

Por último, levou a bola ao meu moró. Ele lançou-a, o Gulliat observou a sua trajectória, viu onde caiu e sentou-se. Não sei ao certo se quem chorou foi o Gulliat ou o moró. O cão ficou sentado, a observar o carro que partia, e nunca nos vamos esquecer do silêncio desse minuto.

segunda-feira, maio 14, 2012

Aprender o inferno na ponta da língua

Nem todos nascemos de sangue cómico. O que não quer dizer que não sejamos atraídos pela comédia quotidiana ou esporádica, só que não sai bem pelas palavras. Penso em especial naquela comédia mais lasciva. Há pessoas particularmente dotadas para o efeito, nas quais palavras infernais soam a pão com doce e pimenta, a chocolate com piri-piri. Houve quem tivesse tentado ensinar-me.

É um bocadinho desgustoso ser do Porto e não conseguir pronunciar correctamente "Ide, ide com a Nossa Senhora do Espanto meus filhos, ide com o caralho!", frase que tanto nos faz rir nos almoços de Domingo. Ou então quando falo com um caro amigo do coração, pergunto se ainda gosta de mim e tenho direito a cinco minutinhos sem quebra de bom palavreado, finalizado por "gosto mais de ti do que de quase todas as pessoas no mundo, porra!" e nunca saber responder à letra.

Pimenta na ponta da língua, uma das lições correntes na minha geração. Creio só ter experimentado uma vez, na escola, após uma saída mais bombástica. Em casa ensinaram-me a não ser pobre de espírito através da língua, mas confesso que sinto uma riqueza enorme em quem sabe verdadeiramente falar mal!

Há uma casa desabitada à qual sorrio de cada vez que faço a viagem entre Lisboa e Porto de comboio. É uma casa de muita memória e de saudade. Aí tive a minha primeira professora de língua do inferno.

- Pronto, os teus pais já foram embora. Agora diz-me todas as asneiras que já aprendeste.
Eu ficava terrivelmente envergonhada e não conseguia falar.

- Se não mas disseres não faço bolo de ananás.
Este era um ponto particularmente sensível. Aquele bolo de ananás e caramelo era divinal. Era um pedaço de céu no inferno que me pedia. Um deveria compensar o outro.

- E se disser, fazes bolo de ananás, batatas fritas e ovo estrelado?
- Diz primeiro, para ver se mereces!

E eu dizia, começava baixinho e ia subindo de tom em consonância com as suas gargalhadas largas, que ocupavam toda a casa e chamavam os animais. Era uma delícia: cães, gatos, asneiras, risos, bolos e fritos, entre outros mimos. O paraíso de uma criança bem regradinha.

- Olha que tu não tens vida para isso, filha. Estudas muito, vais à missa, vais à música e não aparvalhas. Uma pessoa tem de dizer e fazer umas caralhadas para continuar saudável - dir-me-ia alguns anos depois. E punha o rádio a tocar bem alto, ria-se do berro imediato de um vizinho e servia-me outra fatia de bolo de ananás.

Não fui a tempo de lhe contar uma ou outra aprendizagem do inferno. Infernizei particularmente no ano em que morreu. Acredito que ficaria orgulhosa se me visse em palco vestida de sevilhana, a arregaçar a saia e simular que urinava, a lutar com um gancho de cabelo, a fumar sem escrúpulos e a dizer que, naquela situação, uma mulher "agarra o touro pelos cornos, puxa pelos ovários e manda tudo para o caralho!" (1)



(1) Antonio Onetti (2003) A Rua do Inferno, Livrinhos de Teatro.

domingo, maio 13, 2012

Não falemos mal dos gatos

Muito se ouve falar dos gatos, do seu espírito independente, do seu temperamento variável, da humanidade que neles projectamos. O facto de escaparem terna e irritantemente do nosso controlo torna-os dignos de uma infinitude de histórias.

No meu baú há muitas histórias ouvidas tendo os gatos como protagonistas. Gatos que ocupam casas, gatos que criticam falhas musicais, gatos que se entregam à morte distantes dos donos, até aqueles que optam pela morte com a morte dos donos. Gatos que pedem para abrir torneiras e assim bebem água fresca, gatos que vagueiam entre sacos, livros e malas de carros, gatos-amuleto, gatos vadios que trazem amigos para o quintal. Há uma infinidade de histórias possíveis, mas a que conto agora é uma das mais antigas que conheço.

Recuemos, no Porto, à década de 1940. A zona do Largo de Mompilher, nessa altura, seria possivelmente tão escurecida como hoje, mas também sem grandes dúvidas muito mais habitada. Em 2008 ainda havia, só na freguesia de Cedofeita, cerca de 180 ilhas activas; não sei se podemos imaginar quantas seriam, sete décadas antes. Uma ilha, para quem possa não estar familiarizado com o termo, é uma espécie de (parafraseando a avó) "condomínio fechado". Um portão (ou mesmo uma entrada aberta) daria acesso a um tipo de corredor, com uma sucessão de portas (cada uma com direito a uma média de duas divisões, incluindo cozinha) e, no final da sua extensão, uma casa de banho partilhada pelos "condóminos". Devemos acrescentar que atrás de cada porta habitava uma família, regra geral composta por uma mãe, um pai e vários filhos.

Numa das muitas ilhas próximas ao Largo de Mompilher vivia a família de onde provém esta história. Primavam, entre outros atributos, pela capacidade de multiplicação: numa cama individual caberiam facilmente três filhas mais ou menos coetâneas, numa outra o catraio mais fugidio e o pequenote ficava próximo dos pais. 

Alguns princípios de manutenção desta situação de vida foram passando entre gerações. Destaque-se o brio, particularmente na cozinha-sala, mas também a capacidade de inventar soluções com o pouco que se tivesse à mão. Uma mão de farinha, um baldinho de água, um pedaço de bacalhau e alguma salsa fariam um banquete de pataniscas. O óleo em que eram fritas saciava mais rapidamente, atributo necessário nos dias que corriam. As crianças trabalhavam, bem como os pais, o que não significava necessariamente a quantidade de escudos suficiente para pôr comida na mesa.

Num dia de desespero, a gata apareceu. Deambulava pelo seu longo espaço condominial, parava onde a recebessem amavelmente (e que gato recusaria um pratinho de espinhas?), naquele dia parou ali. Parou no dia errado para o mimo humano. Reconchegou-se no colo da mãe, que chorava. Caíam lágrimas após suspiros, angústias após lágrimas e nada a consolava. Acariciava o pêlo da gata, evitaria a todo o custo fazer-lhe mal. Não seria a primeira a fazer passar gato por lebre, mas não era capaz. Nem os seus filhos mereciam ficar sem comer. Continuava a chorar e a gata saiu.

Voltou pouco tempo mais tarde. Na boca, ferrada e suspensa como se fosse seu filho, trazia uma pescada intacta e fresca, que roubara à peixeira. Deixou-a no balcão da cozinha e saiu.

Não falemos mal dos gatos, por favor.

sábado, maio 12, 2012

Histórias pequeninas em Pilastro

Havia um pedacinho de rio nos seus olhos. De um rio turvo, muitas vezes agitado, mais forte que o seu corpinho de quatro anos. Todos os seus companheiros de sala tinham aquela idade, mas mais nenhum vivia com tamanho rio tortuoso dentro dos olhos. Filippo era capaz de fazer todos os exercícios possíveis e imaginários, respondia com astúcia às educadoras e ensinava aos colegas aquilo que pudessem ainda não ter aprendido. Depois fechava-se com o seu rio por tempos variáveis, ora uns minutos ora a manhã inteira, e todo ele era agressivo e tortuoso.

Um dia abordou-me, com uma folha e canetas para colorir, pedindo para se sentar à minha beira. Enquanto desenhava ia-me observando (já me observava há cerca de um mês). Verde e castanho, um pouco de azul escuro.
- Posso contar-te uma história?
- Sou toda ouvidos.
- Este é o meu pai, na pesca. Eu e o meu irmão gostávamos muito de ir à pesca com ele. Há dois meses que não o fazemos. O meu pai suicidou-se há dois meses, e faz-me falta. Por isso é que desenho as coisas que gostava de fazer com ele.

Continua compenetrado na sua tarefa, em silêncio. Pouco depois, ao ver que Dhael não consegue escolher as canetas para o seu desenho, levanta-se e vai ajudá-la.
- O que queres desenhar?
- O meu sonho! - responde a ciganita de olhos negros, cabelos negros entrançados, corpo esguio e desenvolto, sempre preparada para uma corrida. Era raro encontrá-la sentada, ainda para mais com a intenção de desenhar. Quando me encontrou uma vez, na rua, fez questão de me apresentar a todas as senhoras da sua família, que saíram uma após outra das roulottes, curiosas, para conhecerem a estagiária da "escolinha" de Pilastro. Sempre que me perdia naquele bairro, alguma delas acabaria por me encontrar e reconduzir ao sítio certo.

- Qual é o teu sonho, Dhael?
- Fazer uma viagem. Estou a pintar aqui a minha mala. Vai ter muitas coisas! - dizia, com os braços estendidos e os olhos brilhantes.
- E viajas para onde?
- Para o Kosovo.
E aí tinha o mundo todo a brilhar nos olhos, tinha a família que não viera parar a Pilastro, para a qual queria levar uma mala com muitas coisas, sobretudo esparguete.

- Esparguete com um fio de azeite e alho, é o meu prato preferido - responde-lhe Filippo. Os seus olhos de rio continuam a vaguear pela sala. Alguém faz barulho, alguém grita, e Filippo corre ao seu encontro. É Louise, a pequenina loira de olhos azuis, que não quer sair do colo do pai. Agarra-o com força e grita ao ver as educadoras. Filippo aparece de novo ao meu lado, em silêncio, pega na minha mão e conduz-me a Louise. Não precisou de explicar, já o tinha feito com ele: o truque do abraço. Um grandinho põe-se de cócoras à altura de um pequenino, relaxa os braços e respira devagar, criando um abraço calmo. Era o único modo para acalmar o rio turvo dentro de Filippo, e terá pensado que resultaria com Louise. Aceitei o seu convite silencioso.

- Louise, olha quem veio hoje! - disse o pequenito. Ela largou o pai e veio abraçar-me, com muita força, permanecendo ao colo por muito tempo.
- Inês, já disse ao meu pai que hoje à noite temos de ir ao baile! Quero um vestido azul como os meus olhos, com uma saia a rodar muito, e tu também vais bonita!

O pai pouco me conhecia e olhava o chão, algo embaraçado com a fantasia perene de Louise, a menina doce que raramente aterrava na mesma terra da maioria dos colegas. Era das poucas que brincava com Dhael, e só largou o meu colo para aceitar o seu convite e irem brincar para o jardim. Do jardim, Louise gritava:
- Inês, de que cor é o teu vestido para irmos ao baile, hoje? - e acrescentava um sorriso infinito, enquanto descia pelo escorrega.

Só Filippo permanecera na sala. O seu desenho nunca estava perfeito, nunca o dava por terminado. O rio não cabia ali.