domingo, novembro 01, 2015

PDL



Quarta-feira. Os meus pulmões rangem de fumo. Voltei a acordar às 4h, com um pesadelo. As grades não me saem da ideia, nem a meio da semana. Deixei uma garrafa à cabeceira, para acelerar o sono em noites destas, mas hoje nem assim consigo.

Ela dorme. Na mesma posição há 12 anos, com o mesmo pijama, já desbotado de tanta água. Dorme como se não se passasse nada, como se a noite fosse tempo livre feito para dormir.

Apetecia-me acordá-la, encostar-me duro a ela até que acordasse, mas ia ficar chateada, discussão e dor de cabeça. Já veio para a cama depois de mim, há umas duas horas, que o miúdo não queria acalmar.

O puto dorme mal. Não percebe porque é que eu saio ao fim-de-semana e vinga-se todas as noites. Custa-me demais e volto a sair, a ver se encho os miolos doutra coisa qualquer que não os berros deles os dois. Volto, eles calam-se, eu acordo.

Estou todo trocado. Ocupo o tempo todo com esta ideia cinzenta de ser criminoso em part-time e zero a tempo inteiro. De dia trabalho. À noite como com eles, discuto com ela, saio, bebo e volto a pé. Sábado de manhã vou para Monsanto e vivo na pocilga até segunda-feira de madrugada.

À segunda e à sexta o clima é diferente. Temos saudades ou temos medo. Berramos mais, mas não nos largamos. Ela faz bife, traz-me bolo, acorda-me com um sorriso meio tremido. Mas as quartas são de sopa e restos aquecidos.

Aquele cheiro, pior que bafo depois da noite mais passada. É tão podre. Não percebo, nem deve ser suposto. Um gajo é preso em part-time para sentir, ao fim-de-semana, que fez asneira da grossa. É preso para sentir a prisão, porque ao fim-de-semana não há cá prisões que nos ensinem a não cair. Psicólogos, assistentes sociais e gente dos cursos não trabalham ao sábado e ao domingo. Ir dentro ao fim-de-semana é garantir que nos enjoamos o suficiente nos dias livres e ficamos a pensar nisso o resto do tempo.

A única cena que me fazia sentir livre era o ar na cara, ao andar de mota. O ar na cara tirava-me as outras ideias, o berreiro, o vómito do dia-a-dia. O mais depressa que pudesse. E em Monsanto era bom, porque passava pouca gente, e se fôssemos depressa depois da chuva o cheiro era brutal.

Bati uma vez numa árvore e eles apanharam-me tudo: sem carta, sem seguro e bebida a mais. Virei-me contra um dos polícias. Ela vendeu-me a mota durante a preventiva. Ao fim-de-semana volto a Monsanto, para perder o ar.

Um cigarro na varanda. Não fumo na cama desde que fui pai, mas apetecia-me. 4h20. Não há noite viva, não há dia, o tempo que tenho livre é uma merda vazia. Carros na via rápida e chuva miúda, nem os melros se ouvem. 

Mas fumo. Enquanto fumo, respiro. O fumo é meu. Dentro. E fora.





A partir da foto de Luís Barra e da notícia de Hugo Franco e Joana Pereira Bastos, "509 portugueses presos em part-time", sobre prisão por dias livres, no Expresso de 31 de Outubro de 2015.

terça-feira, agosto 04, 2015

Enquanto cresces

O pólen voa entre as flores
de pétalas abertas
num rodopio de cores descobertas
como as da manta que te aguarda.
Estás quase aqui, não tarda
serás como os frutos
que nestes meses crescem
e amadurecem sob o sol.
Aguarda-te o nosso colo
onde serás sempre criança.
Por enquanto, a mãe dança
ao som do teu sonho
e o pai veste esperança
sobre o futuro risonho.
Anda lá, cresce,
vem com calma no tempo certo.
Terás os nossos braços por perto
e a vida toda para sonhar. 
Vem forte como a onda,
inspira como a floresta,
sê tudo o que desejares
no que a vida te empresta.

Primavera

É hoje o tempo
de dançarmos como o vento
que abranda sobre o mar.

É hoje o dia
para forrarmos de alegria
a casa a desabrochar.

Des-solidão

No frio de Novembro,
se bem me lembro,
os tempos batiam cinzentos
de habitual dia-a-dia.
Até que o normal virou magia,
o frio virou relento
e, à nossa volta,
uma imensidão de estrelas.
Uma das memórias mais belas
para sempre:
aquela notícia quente,
maior que todos nós.
Nunca mais estaremos sós.

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

Os nostálgicos das 5h30 da tarde

Nesta rua tão lisboeta,
uma escola de um lado
e, do outro, uma velhinha atrás da janela fechada.

As crianças saem, mascaradas.
Toda a menina é princesa
e os meninos são o que lhes apetecer.
A senhora está só e olha-os.
Não sei se os vê.
A sua cara tem muitos vincos marcados,
talvez tantos quantos os filhos
netos
paixões
todos eles longe, e ela sozinha.
Entre a senhora e as crianças,
a estrada de Benfica
e as numerosas pessoas que aguardam
na paragem do autocarro.
E ninguém se vê,
as crianças correm e brincam sozinhas,
os adultos olham o chão sozinhos.

Só a senhora os observa.