Quarta-feira. Os meus pulmões rangem de fumo. Voltei a acordar às 4h, com um pesadelo. As grades não me saem da ideia, nem a meio da semana. Deixei uma garrafa à cabeceira, para acelerar o sono em noites destas, mas hoje nem assim consigo.
Ela dorme. Na mesma posição há 12 anos, com o mesmo pijama, já desbotado de tanta água. Dorme como se não se passasse nada, como se a noite fosse tempo livre feito para dormir.
Apetecia-me acordá-la, encostar-me duro a ela até que acordasse, mas ia ficar chateada, discussão e dor de cabeça. Já veio para a cama depois de mim, há umas duas horas, que o miúdo não queria acalmar.
O puto dorme mal. Não percebe porque é que eu saio ao fim-de-semana e vinga-se todas as noites. Custa-me demais e volto a sair, a ver se encho os miolos doutra coisa qualquer que não os berros deles os dois. Volto, eles calam-se, eu acordo.
Estou todo trocado. Ocupo o tempo todo com esta ideia cinzenta de ser criminoso em part-time e zero a tempo inteiro. De dia trabalho. À noite como com eles, discuto com ela, saio, bebo e volto a pé. Sábado de manhã vou para Monsanto e vivo na pocilga até segunda-feira de madrugada.
À segunda e à sexta o clima é diferente. Temos saudades ou temos medo. Berramos mais, mas não nos largamos. Ela faz bife, traz-me bolo, acorda-me com um sorriso meio tremido. Mas as quartas são de sopa e restos aquecidos.
Aquele cheiro, pior que bafo depois da noite mais passada. É tão podre. Não percebo, nem deve ser suposto. Um gajo é preso em part-time para sentir, ao fim-de-semana, que fez asneira da grossa. É preso para sentir a prisão, porque ao fim-de-semana não há cá prisões que nos ensinem a não cair. Psicólogos, assistentes sociais e gente dos cursos não trabalham ao sábado e ao domingo. Ir dentro ao fim-de-semana é garantir que nos enjoamos o suficiente nos dias livres e ficamos a pensar nisso o resto do tempo.
A única cena que me fazia sentir livre era o ar na cara, ao andar de mota. O ar na cara tirava-me as outras ideias, o berreiro, o vómito do dia-a-dia. O mais depressa que pudesse. E em Monsanto era bom, porque passava pouca gente, e se fôssemos depressa depois da chuva o cheiro era brutal.
Bati uma vez numa árvore e eles apanharam-me tudo: sem carta, sem seguro e bebida a mais. Virei-me contra um dos polícias. Ela vendeu-me a mota durante a preventiva. Ao fim-de-semana volto a Monsanto, para perder o ar.
Um cigarro na varanda. Não fumo na cama desde que fui pai, mas apetecia-me. 4h20. Não há noite viva, não há dia, o tempo que tenho livre é uma merda vazia. Carros na via rápida e chuva miúda, nem os melros se ouvem.
Mas fumo. Enquanto fumo, respiro. O fumo é meu. Dentro. E fora.
A partir da foto de Luís Barra e da notícia de Hugo Franco e Joana Pereira Bastos, "509 portugueses presos em part-time", sobre prisão por dias livres, no Expresso de 31 de Outubro de 2015.