Não me venham com tretas de que é fácil ser-se ecologista,
feminista, entre outros de activista, levar a vida tranquila e equilibrada e
ter sempre a cabeça no sítio. Em honra a tal dificuldade, vou tentar escrever
uns folhetins sobre EcoFemina.
EcoFemina vive na terra porque calhou, ainda que várias boas
pessoas digam que há um espírito semi-autónomo com alguma responsabilidade
nesse assunto. É Eco porque é da terra, sente ser mais terrena do que consegue
entender por palavras estudadas, gosta do mar e do ar para depois voltar a
descalçar-se e pisar a terra. Enquanto Eco vai aprendendo que cooperação e
competição existem em igual medida, que entre simbiose e parasitismo a
distância pode ser curta e que estas acções servem para responder a
necessidades fisiológicas ou tipo-existenciais como alimentar, desalimentar,
reproduzir, manter a vida e criar beleza que justifique aturar tudo o resto.
Isto em estruturas tendencialmente colectivas, ditas inter-dependentes, nas
quais tudo tem função, cresce para vir a ter ou vive dependente de quem tenha.
É Femina porque fêmea fica mal e feminina não é particularmente aplicável.
Evite-se o cor de rosa da questão, trazendo um bocadinho de bruto (em dias bons
diamante, nos outros pedra dura enraivecida) e a necessidade de bater o pé por
aquilo que continua mais distante do outro lado. Por isso, EcoFemina vive na
terra com corpo de mulher, lutando pela terra e pela mulher. Entre outros.
EcoFemina no quintal
São sempre fascinantes, os sonhos das crianças, sobretudo
quando não são formatados pela publicidade do natal ou pelas expectativas
familiares. Pois o sonho antigo de EcoFemina era voltar à terra que nunca
conhecera. Assim que pôde fugiu da grande cidade e procurou uma casa com
quintal, no meio do verde. Encontrou-a.
Em bom esquema de espelhos, casa e quintal demonstraram-se
tão brutos quanto EcoFemina: "dá para fazer muita coisa, mas é preciso
limar os cantos, dar-lhe forma e controlar-lhe o percurso". Com todos os
santinhos, esta receita nunca resultou. Estude-se melhor a questão, que a gente
interage com a natureza há uns bons aninhos e alguém há-de ter chegado a boas
conclusões sobre casas com quintais antes de EcoFemina; e estudou, ouviu
bastante gente, foi a formações e tentou, falhou, tentou outra vez, falhou
outra vez, tentou outra vez e esperou melhores resultados.
FALHAR: agir sem obter o resultado pretendido. Exemplos: pôr
sementes à terra e vê-las a serem comidas por pássaros; cobrir sementeiras com
rede, ganhando aos pássaros, maravilhar-se com o crescimento da planta e vê-la
a ser destruída em dois dias por caracóis; dispor as plantas em modo tal que
afastem a maioria das pragas e cair um temporal que manda o puzzle todo abaixo.
Uma das coisas que a casa com quintal demonstrou a EcoFemina
foi que o equilíbrio ecológico é imprescindível. Mas não há receita única; é
preciso perceber a dinâmica do sítio e potenciar os factores de equilíbrio.
Trocando por miúdos: um dia, EcoFemina viu um rato. Sendo ela criatura urbanita
e vivendo o sonho neo-quase-rural, o evento não foi muito agradável. Estava a
regar o quintal quando um animal castanho do tamanho de um coelho (ou seja, uma
monstruosa ratazana) se mexeu. Em pânico, atirou-lhe um jacto de água para o
afastar, e só nesse momento aprendeu que o rato foge mas a ratazana ataca. O
monstrinho veio na direcção da água – e, portanto, na direcção de EcoFemina,
que perdeu as estribeiras, guinchou que nem criatura rosa choque, fugiu do
quintal, fechou o pátio, as janelas e até as cortinas – não fosse o monstro
ficar à espreita do outro lado. Após profundo monólogo com rasgos de emoção
raivosa, durante o qual se questionou sobre a porra do motivo de uma pessoa
sair da cidade, viver no frio, mandar sementes à terra e apanhar ratos em
troca, uma ideia mais iluminada ocupou-lhe o pensamento. E que tal começar a
deixar comida para os gatos vadios? Cheiro de gato afasta rato, sem venenos,
sem gaiolas, potenciando o equilíbrio ecológico!
EQUILÍBRIO ECOLÓGICO: estado dinâmico em que as funções e
necessidades dos seres presentes se complementam e controlam recíproca e
harmoniosamente. Exemplos: as flores chamam insectos com funções tão preciosas
como a polinização, mas alguns insectos em demasia destroem as plantas – os pássaros
vão controlando o número de insectos alimentando-se deles; surgem roedores sem
que se perceba qual a sua função, mas a presença dos gatos afasta-os – até que
um dia, expressando a sua admiração, os gatos caçam roedores e dedicam-nos a
EcoFemina, que se enoja profundamente e deixa de perceber outra vez o que é o
equilíbrio ecológico.
EcoFemina não é aquela mulher robusta tão resistente como o
próprio campo – não, fica com alergia a cada vez que mexe na terra. Também não
é a deusa do mistério natural de produção – só aprendeu a diferença entre erva-cidreira
e urtiga porque lhes tocou com os dedinhos e uivou que nem um lobo, e a mulher
não é lobo, e quando uiva parece improvável que queira ligar o seu chakra à
energia universal, liga-se antes à dor universal de quem faz o que não sabe.
Mas felizmente existem plantas aromáticas mais resistentes que as intempéries e
que mostram a EcoFemina como é fácil reproduzi-las. Ela aprende e vai
avançando, errante e coxa. Procura recolher as sementes para plantar noutra
altura, pensando na tia Vandana, mas sendo-lhe difícil chegar à espiritualidade
da questão. A lição ancestral é conhecida: desrespeita-se a natureza e
desrespeita-se a mulher, se as duas lutas se unirem poderão ganhar uma força
imensa. Uma grande incursão produtiva, entre sementes e barrigas. Plantas que
nunca são iguais, mesmo dentro da mesma espécie, e mulheres que procuram ter
lugar para as suas diferenças. É em geral neste momento que um insecto entra na
luva e pica EcoFemina.