quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Sobre a mulher agradável que tem (vergonha de) um corpo

Sento-me ao sol no pátio caótico que demorarei a arrumar. Apoio o caderno n'«O Segundo Sexo [I]» de Simone de Beauvoir, ao qual regresso uns bons anos depois de o ter encontrado. Falta uma semana para dia 14 de Fevereiro, dia V - não só de S. Valentim, será também dia de reivindicação mundial pelos direitos das meninas e mulheres. Sugerindo uma semana de reflexão sobre estes V-direitos, começo por pensar no direito ao corpo.

Creio ser universal a visão de que o corpo é um direito - da atribuição divina de um corpo para existência terrena até à consideração do corpo enquanto locus de marca no correr do tempo; o corpo que materializa a vida, o corpo que caminha, o corpo em que o caminho se tatua, o corpo que morre por natureza ou desígnio. A questão não será se o corpo é um direito; é mais: o corpo é um direito de quem?

A resposta verbal pode ser mais imediata que a resposta vivida. Não tenho qualquer dúvida em trazer para as letras: o direito sobre o corpo é detido pelo próprio, pela pessoa-corpo-espírito-mente que o vive. A dúvida surge na retrospectiva: será que sempre confiei nesse meu direito e nunca o desrespeitei, emprestando-o à voz e acção dos outros? Não, nem sempre assumi esse direito.

Não creio que se trate somente de um problema feminino, mas sim de uma questão generalizável a diferentes grupos potencialmente mais vulneráveis. Quando se coloca o problema do direito sobre o corpo, o meu primeiro pensamento recai sobre as crianças. Que direitos lhes atribuem as estruturas colectivas no que toca à sua salvaguarda corporal? No caso português, estatutariamente, muitos direitos lhes são atribuídos e reconhecidos. Pude observá-lo na legislação sobre serviços sociais para a infância e seu atendimento educativo, há uns anos atrás. Mas do espectro legal à realidade praticada há sempre espaço de viagem, e a viagem pode tornar-se particularmente tortuosa nos espaços mais escondidos: a criança dentro da sala, a criança dentro de casa, a criança onde pode não ser vista. E aí não haverá lei que nos salve; para esses lugares escondidos, acredito que a única salvação é rever o que é ou deixa de ser legítimo na nossa acção.

A violência ainda é legítima. A repreensão física sobre quem não tem estrutura possível para responder, ainda que actualmente tenha menor aceitação, continua a ter muita. A formação do respeito ainda se confunde muito com a criação do medo, seja por meio físico ou verbal. A educação é imprescindível e ainda não se domina a sua versão respeitosa, assertiva e não violenta. A família e a escola são geralmente os guardiões do direito sobre o corpo das crianças e muitas vezes não sabem salvaguardar esse direito, desprezando até a voz da própria criança. O seu corpo, através do qual aprende ao explorar o mundo, torna-se no primeiro saco através do qual duvida sobre a dignidade da sua pessoa.

O corpo vergonhoso surge muito cedo. Rapidamente as crianças se apercebem que dizer magro, gordo, caixa de óculos, perna longa, perna curta, marcado, descabelado, juba de leão, olhos tortos, dentes esquisos [e por aí fora] tem um impacto nos outros. A partir daí agem e reagem, são mais ou menos legitimadas e reforçadas pelos adultos que as rodeiam, resolvem ou deixam por resolver uma série de questões. Mas, enquanto crianças, ficam tendencialmente na versão parcial da resolução - ao não deterem e dominarem o direito sobre o seu corpo, estes dilemas (sobretudo se surgirem num contexto de pouca confiança própria) perpetuam-se na atribuição da resolução ao outro. Uma pessoa será bonita, inteligente e agradável se o outro a reconhecer como tal.

O "agradável" foi posto de propósito para abordar a questão feminina. As mulheres não são crianças grandes, mas a imputação do "papel agradável" faz com que muitas vezes se assemelhem na infantilidade emotiva ligeirinha que se lhes legitima. Dizia Beauvoir sobre Stendhal: "Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama na sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a ideia de um «eterno feminino» parece-lhe pedante e ridícula. «Pedantes repetem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo, e os homens mais solidez; que as mulheres têm mais delicadeza nas ideias, e os homens maior capacidade de atenção. Um basbaque de Paris que passeava outrora pelos jardins de Versalhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas.»" (p. 337). A mulher agradavelmente podada é a que responde aos mitos do feminino: é a carne da natureza, simultaneamente húmus e beleza sensível, detentora das chaves da poesia, mediadora entre o natural e o sobrenatural, votada à imanência passiva da distribuição de paz e harmonia, o outro que serve à realização do homem (palavra de Beauvoir). Além destas versões da mulher, há a fêmea.

Queria falar sobre o corpo. Creio que o corpo reflecte as mesmas categorias da mulher agradável. O corpo agradável vai tendo standards diferenciados, já foi mais arredondado, agora é emagrecido, relativamente alto e sob a moda do étnico - não importa só a barbie 34 loira branquinha, também pode ser africana ou asiática e de tonalidades variáveis. Mas, seja como for, terá de ser consciente sobre a sua carne: revelando-a ou escondendo-a na noção de que isso pode provocar acções de realização por parte do homem. Domando o corpo para que diga "sensível" ou até "transcendente". Passar de fêmea a feminina.

A vergonha começava por ligar-se à não conformidade com o standard 34 simétrico, com a bacia que não encaixava na forma pretendida para as ancas, com a dificuldade de concretização física de algumas actividades e a exposição que daí derivava. Somavam-se cicatrizes tatuadoras de muitos momentos e actividades hormonais desconcertantes. Falo da minha vergonha. Do facto de só ter conseguido comprar uma saia curta em 2007, três anos depois de começar este blog, e de ainda hoje só a conseguir usar com meias opacas, "para que não se veja". Falo da dificuldade em sair à rua com um decote, "porque é tentador" - e quando alguém manifesta a tentação fico tão desorientada que o corpo entra em colapso, viro costas, volto a casa, troco de roupa e saio de olhos no chão. Nestes momentos, não respeito o direito ao meu corpo. Contribuo para a paz violenta, aquela em que os olhos alheios nos controlam e depois fica tudo calminho. Contribuo para a poesia do silêncio improdutivo, aquela poesia que na realidade se basta em rimas cruzadas e sempre consoantes.

Vivo num país que faz parte dos 199 países que dia 14 se levantam para dizer "viva a mulher" e não "vergonha de mulher". Sugiro que todos/as o celebrem e se coloquem alguns "e se?". Por exemplo: e se não caísse na tentação de dizer à pessoa aqui ao lado "assim estás bem, fica-te bem"? É que isso pode querer dizer que antes estava mal - da mesma maneira que dizer "hoje estás particularmente elegante" não nos deixa pensar que alguma vez não estivemos bonitos/as - isso é-se, não se está. E se repetíssemos que o corpo faz parte de um conjunto mais vasto e autónomo, não sendo um vegetal que aguarda acção externa? Talvez a diferença mentalizada entre homem e mulher se tornasse não tão mais que um conjunto de diferenças corporais - sobre isso, como sobre a personalidade e o espírito activo, somos livres. Quando a soberania individual sobre o corpo for real, o abuso sexual será uma miragem longínqua. A legitimidade é uma coisa construída e temporalmente relevante; sugiro que se deslegitime a violência e que se legitime a soberania sobre o corpo. Já perdemos tempo demais.



Simone de Beauvoir (2008) O Segundo Sexo, Lisboa: Quetzal (ed. original 1949)

2 comentários:

rebelonya disse...

Também publicado em Femmuary

http://femmeuary.wordpress.com/2013/02/19/about-the-pleasant-woman-who-has-a-body-and-feels-ashamed-about-it/

Anônimo disse...

Só podemos dizer que gostamos muito, visto não termos conhecimentos para mais.
Cotas