domingo, dezembro 30, 2012

O ano será novo,

dizem "eles". Por mim seria Farei por que seja um ano 

1. de magia, em que se possa sonhar muito, dizê-lo em boa voz ou segredá-lo ternurantemente a um saquinho de sonhos, bem como procurando atirar uns pós encantados para ajudar aos sonhos de quem nos rodeia;
2. de mimos, porque sim;
3. de lealdade àquela mão cheia de amigos gigantões e de abertura para novos amigos que possam surgir, sem esquecer a tanta gente deliciosa que nos vai acompanhando;
4. de birra - entenda-se o seu nobre sentido italiano e a promessa de que continuarei a trabalhar para conseguir beber bem cerveja, acompanhada de mais saídas, se possível;
5. de crescimento, e esta quase que é batota e está cansada, vem à baila todos os anos;
6. dos clichés que fazem a vida: paz, amor, saúde e boa comida;
7. de esperança, a ver se a harmonia lúcida volta a reacompanhar tanta gente boa.

Pegue-se nos votos de cada um e faça-se por isso. Que não dure apenas uma noite, se não for esse o sonho. E, se só houver uma noite, que seja plena *

quarta-feira, novembro 07, 2012

quinta-feira, outubro 25, 2012

Retorno

"Mãezinha, cansei-me de pessoas."

Ele andava vestido de lágrima e a mãe não conseguiu recuperar-lhe nenhuma palavra, nem uma, até que deixasse de respirar. É ingrato para uma mãe, mulher que põe um filho no mundo, luta por ele e nunca o possui. Vê que o filho se cansou de pessoas por deixar que outros o possuíssem, ou a sua sombra, ou o seu fantasma.

Deixou-se hidratar de lágrima e ali ficou, em fotossíntese. A esperança era tornar-se árvore, que antes já tentara usar as pernas para fugir e viveu muito, mas piorou. Agora que fossem pernas de raiz, esbranquiçadas, à procura de húmus.

Mas as suas pernas escuras queimavam-se sempre que as enfiava na terra amarelada. Não tanto como no deserto, é certo, mas queimavam. A terra já se divorciara da água há algum tempo. E ele só chorava frente à mãe e ao Deus a que rezava. Quando teve de atravessar o deserto foi o tempo todo a falar com Deus. Quase dois anos, atravessava o deserto, trabalhava na cidade, chegava ao mar e traziam-no de volta para o deserto, onde voltava a seguir os cadáveres para ter a certeza do caminho até ao paraíso. 

E um dia lá chegou ao paraíso, foi preso, viveu na rua, depois numa cave, trabalhou sempre à noite e lá conseguiu pagar um quarto. Ali não passava fome de entranhas mas sim fome de coisa humana. Fazia o que podia para esquecer: bebia, alucinava-se ligeiramente, olhava infinitamente a estrada, gastava o que ganhasse no jogo. Vivera melhor em África, mas não podia regressar de mãos vazias. Faltava-lhe a mãe, porra. Era a mãe que conseguia inventar sempre o que pôr no prato de cada um dos nove filhos, mesmo sem ter nada. Nem que fosse pão com farinha de grãos cozida, jejum permanente, mas não lhes ensinou o significado de fome. Ensinou-os a não se habituarem a comer.

Ele aprendeu a fome e o hábito na Europa. Diziam-lhe sempre que ele era do país dos que tinham fome, coitadinho. E ele queria abaná-los e dizer que no seu país havia mais que fome, que a crença dos coitadinhos não os ajudava, que o dinheiro que lhes mandavam para a comida ia para as armas e que as armas sempre em riste eram o verdadeiro problema. Um problema que vinha da luta para mandar mais e ter mais terras que o primo do lado, do norte ou do sul. Havia sempre problema. Mas ali ele tinha sido mais feliz.

Juntou uns trocos e voltou. Queria dar à mãe o que conseguira, essa mãe cujo colo tanto lhe faltou, passou tantas horas a pensar no seu cheiro a farinha e malagueta para acalmar os tempos piores. Mas eram poucos trocos e quem mais lá estava desprezou-o. Tinham investido muito na sua viagem e ele só trazia cabelos brancos, desânimo e três tostões. Envergonhou-se. Não era este o seu sonho, mas também já não sabia o que era sonhar. No deserto, enquanto falava ininterruptamente com Deus, passou à descrença na vida boa; só queria sobreviver. Sempre e a cada momento. Pensar demais fazia mal, sonhar e ver o sonho-morto ainda pior. Preferia olhar o tempo, gozar com ele, passá-lo e vitoriar-se disso. Até que se cansou e voltou para África.

E ninguém o aceitou, só a mãe. Mas a mãe diluía-se nas suas lágrimas, ela que também se fartara de pessoas, mas não dos seus filhos. Ela que lhe contava história após cantiga para o animar - mesmo no sentido de lhe voltar a dar alma -, mas há voltas que conduzem mesmo ao cansaço profundo. Ele cansara-se de pessoas. Viveu o resto do tempo a olhar o sol pôr-se na terra amarela onde as árvores já não vingavam. E olhava o tempo, gozava com ele, passava-o sem que conseguisse vitoriar-se de coisa alguma.

sexta-feira, julho 13, 2012

Sexta-feira treze

Um dia da semana, como os outros. Um dia de trabalho, de compras, de férias, de festas e funerais: às sextas-feiras treze cabe de tudo. Faça-se uma ressalva aos gatos pretos, daquele negrume encantador, que são quem mais sofre nestes dias mistificados. Dias em que a gente lhes põe espírito (aos dias, que os gatos têm-no de sobra).

Mas hoje é uma sexta-feira treze especial. Porque hoje faz anos que, numa terça-feira treze de mil novecentos e cinquenta e quatro, a Frida Kahlo morreu. Nesse mesmo dia abençoado pelo génio da força, entre cores fortes, o meu pai nasceu.

Foi numa casa pequenina das ruas do Porto que a avó o trouxe à luz. Tê-lo-á tido entre lençóis brancos, dias quentes e sorrisos de bebé novo nas carinhas dos cinco irmãos. Criou-o na força dos seus braços e no amor dos seus gestos, nutrindo-o de maravilhas cozinhadas em lume brando num pote de ferro.

Fez treze anos numa sexta-feira treze e nesse dia bateu com a cabeça numa esquina enquanto levava um dos recados de que era moço. Depois disso, foi moço de muitas outras coisas. Sobretudo de paixões e encantos. É de substância musical e a viagem também lhe corre nas veias.

Foi sentindo necessidade de aumentar a alma com gargalhadas de puxar a lágrima, pelo que vamos sabendo que de vez em quando os sinais de trânsito se trocavam nas ruas do Porto e que alguém delirava de contentamento ao ver as expressões atónitas dos transeuntes, sentado num café de esquina ao romper do dia. Noutros dias acompanhava a claque do Salgueiros aos jogos fora, mas em geral os desgraçados jogavam enquanto eles discutiam prognósticos e gargalhavam no café ali à beira.

A alma também cresce na luta e no amor, e em ambos tem conduzido uma vida muito grande. E eu sou simplesmente uma aluna meio desatenta que ainda tem muito a aprender, à qual as palavras fogem quando é para falar do maior pai. Mas as palavras vieram em grande parte dele, quando me ensinava as músicas do Zeca que ainda hoje dão sentido aos dias que o não têm. Também me ensinou a harmonia, fazendo-nos cantar a duas vozes. Ensinou a pertinência de alguma loucura e de encarar o difícil com força no coração, humor na cabeça e um sorriso acolhedor nos olhos.

Entre muitas outras coisas. Não está ao alcance do comum dos mortais experimentar os limites da humanidade, girar o mundo e sonhá-lo de novo, despir a camisa por quem mal se conhece e nutrir os amigos de alma com o melhor pão e o melhor vinho.

A gente pega na vida com mão firme e nunca se esquece que há sempre mais linhas por escrever. Uma infinidade de palavras, mesmo até ao infinito, dá-se uma curva e continua. Que há muita gente a querer escrever pouquinhas linhas, e talvez por isso o mundo se não tombe.



Parabéns, môr! 

quarta-feira, junho 06, 2012

Someday (ou as noites em que se salva a vida)

Dezembro de 2002. Os dias andavam ásperos de preocupação. Desenhava o medo no Hospital de S. João e a incapacidade de tirar a dor na Ordem de S. Francisco. Ria-me estupidamente do sofrimento de quem não sofria o mesmo, o que acabou por assustar os colegas, amigos e professores que só nas vésperas perceberam. Havia um coração que não cabia em si e tinha de ser reparado. Um coração que me era muito próximo, e eu tremia muito. Todos tentaram preparar-me para aceitar não saber o que aconteceria; médicos, professores e família explicaram o ponto da incerteza. Operar era um risco grande, não operar seria um fim antecipado. Nessa noite, pela primeira vez, a minha mãe pediu-me para não ficar em casa.

Tinha-lhe ligado pouco antes, a minha Cenoura - tinha cabelos vermelhos e dava muita energia - pôs-se à estrada e veio ter comigo ao Porto. Infiltrámo-nos na casa da nossa eterna Animadora, que morava numa república da R. Miguel Bombarda, em frente a um café fogoso. Nessa noite elas salvaram-me a vida (obrigada*), e o coração pelo qual tremia também foi salvo.

Nunca sei ao certo a ordem dos factores e alguns episódios já tiveram de me ser recordados pela Cenoura, mas creio que começámos pela invasão de outros quartos da república. Começámos quase de certeza por falar muito e incessantemente, até termos menos fome de palavras e mais fome de comida. Depois saímos e fomos ter à reitoria. Ali funcionava a cantina universitária, onde regra geral se comia baratinho, desde que se jantasse cedo... Mas nesse dia estava ocupada. Festejava-se o natal entre pais e crianças, com os quais metemos conversa e junto dos quais jantámos. Não pagámos um tostão e seguimos para outra meta: festa flower power dos estudantes de arquitectura da Universidade do Porto.

A Animadora era estudante de arquitectura, mas de outro sítio; a Cenoura estaria no primeiro ano de sociologia, se não erro as contas; e eu a meio do ensino secundário. Ora bem, encenemos: uma flor aqui e ali, no cabelo e na roupa, e entramos a dançar. "Quando nos perguntarem, dizemos que sim!", e dissemos sempre que sim, éramos sem dúvida estudantes de arquitectura. Os Strokes estavam sintonizados e deixaram-nos saltar muito, antes ainda de os saltos serem induzidos. Era uma festa universitária com algum álcool disponível, houve quem nos oferecesse e o resto foi com a poupança do jantar. Era maravilhosa a nossa inocência junto daqueles grandes todos, e rimos mesmo de ânimo pleno quando à pergunta "Tens tabaco?" foi respondido "E também tenho pulmão!"

Saímos de lá tão suadas como se fosse uma noite de verão, e ainda tínhamos energia. Caminhámos na direcção da Ribeira, onde alguma coisa deveria estar aberta. Ríamo-nos muito e falávamos alto, tentando passar a euforia para quem mais fosse transeunte ou residente. Fomos dar a um bar com karaoke, onde sintonizei na cuba livre, que me deixou cantar uma, e outra, e mais outra, até fazer dueto com o rasta lá do sítio, se não me engano cantámos Bob Marley, No woman, no cry. Éramos nós e nós a cantar, ele acabou por vir para a nossa mesa e nós-meninas acabámos por perceber que os nossos corpos já estavam a precisar de outro repouso. Seguimos a pé para a R. Miguel Bombarda e só não vimos o nascer do sol porque estávamos próximas do dia mais curto do ano, e chovia.

A chuva foi lavando a cuba livre e o que mais tivesse bebido para saltar. Já não conseguia dizer uma palavra, felizmente elas estavam cansadas e foram dormir. De manhã deixámos a Animadora em modo de sono, a Cenoura voltou de transporte público para Lisboa e eu segui para o hospital. Estava tudo bem, entrei e desmaiei. Duas vezes, mas pelo menos acordava a ouvir Bob Marley e a responder a "Qual é o teu nome, Ana?" com "Inês!". Nos cuidados intensivos devo ter ouvido as palavras erradas, confundida das ideias. Calhei no lado mais pontiagudo, o lado mais sensível, o lado do coração salvo.


In many ways, they'll miss the good old days
Someday, someday

(Someday, The Strokes)

domingo, maio 27, 2012

Gulliat e o meu moró

Porque os cães também ocupam um lugar muito importante na memória das pessoas. Até daquelas que nunca tiveram um cão, como eu. E aqui, mais uma vez, poderia contar um sem-número de histórias. Aprender a andar agarrada à cauda do Leão, fazer de conta que a Afrodite era minha, fazer de lobo com o Príncipe, dormir com o Rollie como cobertor, receber a patinha da Maria como pedido de desculpa por me ter ladrado, ser recebida pela Kika como se fosse a raínha do quintal... Mas nas restantes não aparece o meu moró ("morosó de las minhas bideirinhas, de los meus coraçons sagrados de lo bu, muah! 'té 'manhã, moró!"), e dado o carácter imbatível deste título, conto uma história do Gulliat.

Nos idos de 1993, pelos meus 7 anos, fomos a França. O que agora é uma viagem rápida de low cost, na altura era uma viagem longa de Citröen AX, repleta de estações e apeadeiros. E creio que nunca saberei quão mais longa se tornava com a minha questão perene - "Quantos quilómetros faltam?" - desde a primeira curva até estacionarmos o carro de vez. Fomos visitar a família emigrante em França, com direito a campismo em Saint-Jean-de-Luz, Disney em Paris, Parc Astérix em Plailly, Futuroscope em Poitiers... Dá para imaginar?

Foi uma viagem inesquecível. Tivemos direito a tudo: calor alucinante que nos fazia atravessar muitas vezes a porta de água do Asterix, chuva diabólica nos jardins de Versailles, trovoada que parou o simulador do Futuroscope na posição em que o senhor ia a cair do comboio, ardor febril de uma picada de abelha e de uma bola-de-berlim estragada, e nada, rigorosamente nada, escureceu a deliciosa memória desses dias. Tivemos alguns almoços e jantaradas com família e amigos que não falavam minimamente a mesma língua que eu. Nessas alturas falava com os cães, ou então entretinha-me sozinha a cantarolar a música do parque de telecomunicações da Disney, que me fez chorar de alegria pela primeira vez.

Se a memória não me engana, nos últimos dias de viagem fomos todos para a casa do bosque, onde vivia uma prima. Os morós e os tios de Sintra também lá estavam, e éramos imensos para o espaço incrivelmente pequeno daquela casa. Mas cabíamos todos, como sempre, nesta família. O habitante mais fascinante era o Gulliat. Substancialmente maior que eu, era um pastor alemão adulto, bem ensinado, e conseguiu em poucos minutos tirar-nos o medo de bixos daquela envergadura.

- Gulliat, assis toi.
E ele sentava-se, obediente à dona, que nem tinha de o repetir. Por vezes deitava-se, suspirava e chorava dois segundos, para que percebêssemos que não se importaria por nada deste mundo de participar connosco na refeição. A dona abria os olhos na sua direcção, ele punha a pata sobre o focinho e ficava em silêncio.

A dona era uma pessoa muito assertiva e pragmática. Em dia ruim, levava o mundo à frente - e, mesmo assim, conseguia chegar a horas ao trabalho. Tivemos a honra de presenciar um desses dias, no qual a chave ficou presa na porta, do lado de fora, quando ia a sair de manhã. O Gulliat tinha uma casota bem fornecida, designadamente de ferramentas. A dona foi ter com ele, pegou num martelo, martelou a fechadura até cair, entrou em casa, pegou numa rolha e colocou-a no lugar da fechadura.

- Gulliat, la maison - e ele ficou a guardar a casa, obviamente, e ninguém tentou entrar.

No último dia, o meu moró foi brincar com o Gulliat. O moró lançava uma bola pequenita e o Gulliat apanhava-a, ora no ar ora na terra, e voltava a trazer para que continuasse o jogo. Corria, saltava e esperava com as patas dianteiras no chão e as patas traseiras esticadas, a desafiar o moró, que se ria com satisfação.

As malas já estavam todas nos carros e o Gulliat decidiu incluir outros parceiros na brincadeira. Levou a bola uma vez a cada um que partiria. Não perdia o fulgor em cada viagem; levava a bola, pedia que a lançasse, recolhia-a em movimento, corria de volta, levava ao seguinte...

Por último, levou a bola ao meu moró. Ele lançou-a, o Gulliat observou a sua trajectória, viu onde caiu e sentou-se. Não sei ao certo se quem chorou foi o Gulliat ou o moró. O cão ficou sentado, a observar o carro que partia, e nunca nos vamos esquecer do silêncio desse minuto.

segunda-feira, maio 14, 2012

Aprender o inferno na ponta da língua

Nem todos nascemos de sangue cómico. O que não quer dizer que não sejamos atraídos pela comédia quotidiana ou esporádica, só que não sai bem pelas palavras. Penso em especial naquela comédia mais lasciva. Há pessoas particularmente dotadas para o efeito, nas quais palavras infernais soam a pão com doce e pimenta, a chocolate com piri-piri. Houve quem tivesse tentado ensinar-me.

É um bocadinho desgustoso ser do Porto e não conseguir pronunciar correctamente "Ide, ide com a Nossa Senhora do Espanto meus filhos, ide com o caralho!", frase que tanto nos faz rir nos almoços de Domingo. Ou então quando falo com um caro amigo do coração, pergunto se ainda gosta de mim e tenho direito a cinco minutinhos sem quebra de bom palavreado, finalizado por "gosto mais de ti do que de quase todas as pessoas no mundo, porra!" e nunca saber responder à letra.

Pimenta na ponta da língua, uma das lições correntes na minha geração. Creio só ter experimentado uma vez, na escola, após uma saída mais bombástica. Em casa ensinaram-me a não ser pobre de espírito através da língua, mas confesso que sinto uma riqueza enorme em quem sabe verdadeiramente falar mal!

Há uma casa desabitada à qual sorrio de cada vez que faço a viagem entre Lisboa e Porto de comboio. É uma casa de muita memória e de saudade. Aí tive a minha primeira professora de língua do inferno.

- Pronto, os teus pais já foram embora. Agora diz-me todas as asneiras que já aprendeste.
Eu ficava terrivelmente envergonhada e não conseguia falar.

- Se não mas disseres não faço bolo de ananás.
Este era um ponto particularmente sensível. Aquele bolo de ananás e caramelo era divinal. Era um pedaço de céu no inferno que me pedia. Um deveria compensar o outro.

- E se disser, fazes bolo de ananás, batatas fritas e ovo estrelado?
- Diz primeiro, para ver se mereces!

E eu dizia, começava baixinho e ia subindo de tom em consonância com as suas gargalhadas largas, que ocupavam toda a casa e chamavam os animais. Era uma delícia: cães, gatos, asneiras, risos, bolos e fritos, entre outros mimos. O paraíso de uma criança bem regradinha.

- Olha que tu não tens vida para isso, filha. Estudas muito, vais à missa, vais à música e não aparvalhas. Uma pessoa tem de dizer e fazer umas caralhadas para continuar saudável - dir-me-ia alguns anos depois. E punha o rádio a tocar bem alto, ria-se do berro imediato de um vizinho e servia-me outra fatia de bolo de ananás.

Não fui a tempo de lhe contar uma ou outra aprendizagem do inferno. Infernizei particularmente no ano em que morreu. Acredito que ficaria orgulhosa se me visse em palco vestida de sevilhana, a arregaçar a saia e simular que urinava, a lutar com um gancho de cabelo, a fumar sem escrúpulos e a dizer que, naquela situação, uma mulher "agarra o touro pelos cornos, puxa pelos ovários e manda tudo para o caralho!" (1)



(1) Antonio Onetti (2003) A Rua do Inferno, Livrinhos de Teatro.

domingo, maio 13, 2012

Não falemos mal dos gatos

Muito se ouve falar dos gatos, do seu espírito independente, do seu temperamento variável, da humanidade que neles projectamos. O facto de escaparem terna e irritantemente do nosso controlo torna-os dignos de uma infinitude de histórias.

No meu baú há muitas histórias ouvidas tendo os gatos como protagonistas. Gatos que ocupam casas, gatos que criticam falhas musicais, gatos que se entregam à morte distantes dos donos, até aqueles que optam pela morte com a morte dos donos. Gatos que pedem para abrir torneiras e assim bebem água fresca, gatos que vagueiam entre sacos, livros e malas de carros, gatos-amuleto, gatos vadios que trazem amigos para o quintal. Há uma infinidade de histórias possíveis, mas a que conto agora é uma das mais antigas que conheço.

Recuemos, no Porto, à década de 1940. A zona do Largo de Mompilher, nessa altura, seria possivelmente tão escurecida como hoje, mas também sem grandes dúvidas muito mais habitada. Em 2008 ainda havia, só na freguesia de Cedofeita, cerca de 180 ilhas activas; não sei se podemos imaginar quantas seriam, sete décadas antes. Uma ilha, para quem possa não estar familiarizado com o termo, é uma espécie de (parafraseando a avó) "condomínio fechado". Um portão (ou mesmo uma entrada aberta) daria acesso a um tipo de corredor, com uma sucessão de portas (cada uma com direito a uma média de duas divisões, incluindo cozinha) e, no final da sua extensão, uma casa de banho partilhada pelos "condóminos". Devemos acrescentar que atrás de cada porta habitava uma família, regra geral composta por uma mãe, um pai e vários filhos.

Numa das muitas ilhas próximas ao Largo de Mompilher vivia a família de onde provém esta história. Primavam, entre outros atributos, pela capacidade de multiplicação: numa cama individual caberiam facilmente três filhas mais ou menos coetâneas, numa outra o catraio mais fugidio e o pequenote ficava próximo dos pais. 

Alguns princípios de manutenção desta situação de vida foram passando entre gerações. Destaque-se o brio, particularmente na cozinha-sala, mas também a capacidade de inventar soluções com o pouco que se tivesse à mão. Uma mão de farinha, um baldinho de água, um pedaço de bacalhau e alguma salsa fariam um banquete de pataniscas. O óleo em que eram fritas saciava mais rapidamente, atributo necessário nos dias que corriam. As crianças trabalhavam, bem como os pais, o que não significava necessariamente a quantidade de escudos suficiente para pôr comida na mesa.

Num dia de desespero, a gata apareceu. Deambulava pelo seu longo espaço condominial, parava onde a recebessem amavelmente (e que gato recusaria um pratinho de espinhas?), naquele dia parou ali. Parou no dia errado para o mimo humano. Reconchegou-se no colo da mãe, que chorava. Caíam lágrimas após suspiros, angústias após lágrimas e nada a consolava. Acariciava o pêlo da gata, evitaria a todo o custo fazer-lhe mal. Não seria a primeira a fazer passar gato por lebre, mas não era capaz. Nem os seus filhos mereciam ficar sem comer. Continuava a chorar e a gata saiu.

Voltou pouco tempo mais tarde. Na boca, ferrada e suspensa como se fosse seu filho, trazia uma pescada intacta e fresca, que roubara à peixeira. Deixou-a no balcão da cozinha e saiu.

Não falemos mal dos gatos, por favor.

sábado, maio 12, 2012

Histórias pequeninas em Pilastro

Havia um pedacinho de rio nos seus olhos. De um rio turvo, muitas vezes agitado, mais forte que o seu corpinho de quatro anos. Todos os seus companheiros de sala tinham aquela idade, mas mais nenhum vivia com tamanho rio tortuoso dentro dos olhos. Filippo era capaz de fazer todos os exercícios possíveis e imaginários, respondia com astúcia às educadoras e ensinava aos colegas aquilo que pudessem ainda não ter aprendido. Depois fechava-se com o seu rio por tempos variáveis, ora uns minutos ora a manhã inteira, e todo ele era agressivo e tortuoso.

Um dia abordou-me, com uma folha e canetas para colorir, pedindo para se sentar à minha beira. Enquanto desenhava ia-me observando (já me observava há cerca de um mês). Verde e castanho, um pouco de azul escuro.
- Posso contar-te uma história?
- Sou toda ouvidos.
- Este é o meu pai, na pesca. Eu e o meu irmão gostávamos muito de ir à pesca com ele. Há dois meses que não o fazemos. O meu pai suicidou-se há dois meses, e faz-me falta. Por isso é que desenho as coisas que gostava de fazer com ele.

Continua compenetrado na sua tarefa, em silêncio. Pouco depois, ao ver que Dhael não consegue escolher as canetas para o seu desenho, levanta-se e vai ajudá-la.
- O que queres desenhar?
- O meu sonho! - responde a ciganita de olhos negros, cabelos negros entrançados, corpo esguio e desenvolto, sempre preparada para uma corrida. Era raro encontrá-la sentada, ainda para mais com a intenção de desenhar. Quando me encontrou uma vez, na rua, fez questão de me apresentar a todas as senhoras da sua família, que saíram uma após outra das roulottes, curiosas, para conhecerem a estagiária da "escolinha" de Pilastro. Sempre que me perdia naquele bairro, alguma delas acabaria por me encontrar e reconduzir ao sítio certo.

- Qual é o teu sonho, Dhael?
- Fazer uma viagem. Estou a pintar aqui a minha mala. Vai ter muitas coisas! - dizia, com os braços estendidos e os olhos brilhantes.
- E viajas para onde?
- Para o Kosovo.
E aí tinha o mundo todo a brilhar nos olhos, tinha a família que não viera parar a Pilastro, para a qual queria levar uma mala com muitas coisas, sobretudo esparguete.

- Esparguete com um fio de azeite e alho, é o meu prato preferido - responde-lhe Filippo. Os seus olhos de rio continuam a vaguear pela sala. Alguém faz barulho, alguém grita, e Filippo corre ao seu encontro. É Louise, a pequenina loira de olhos azuis, que não quer sair do colo do pai. Agarra-o com força e grita ao ver as educadoras. Filippo aparece de novo ao meu lado, em silêncio, pega na minha mão e conduz-me a Louise. Não precisou de explicar, já o tinha feito com ele: o truque do abraço. Um grandinho põe-se de cócoras à altura de um pequenino, relaxa os braços e respira devagar, criando um abraço calmo. Era o único modo para acalmar o rio turvo dentro de Filippo, e terá pensado que resultaria com Louise. Aceitei o seu convite silencioso.

- Louise, olha quem veio hoje! - disse o pequenito. Ela largou o pai e veio abraçar-me, com muita força, permanecendo ao colo por muito tempo.
- Inês, já disse ao meu pai que hoje à noite temos de ir ao baile! Quero um vestido azul como os meus olhos, com uma saia a rodar muito, e tu também vais bonita!

O pai pouco me conhecia e olhava o chão, algo embaraçado com a fantasia perene de Louise, a menina doce que raramente aterrava na mesma terra da maioria dos colegas. Era das poucas que brincava com Dhael, e só largou o meu colo para aceitar o seu convite e irem brincar para o jardim. Do jardim, Louise gritava:
- Inês, de que cor é o teu vestido para irmos ao baile, hoje? - e acrescentava um sorriso infinito, enquanto descia pelo escorrega.

Só Filippo permanecera na sala. O seu desenho nunca estava perfeito, nunca o dava por terminado. O rio não cabia ali.

domingo, abril 15, 2012

Aos ciganos de alma


Gypsy road @ Alentejo/Algarve, (sofrida) Biketour 2004


Quem nos salvar da alma cigana, golpeia a alma. Há quem tenha substância de viagem, por mais que ela doa. E em cada ramo lemos o vento, com o vento continuamos caminho, no silêncio sonhamos o toque meigo que recorda o tempo calmo, no rumor acordamos e continuamos caminho.

Continuamos sempre a caminho. Sou Vieira, peregrina, rumo ao sonho e por vezes abandono-me ao longo da estrada. Depois encontro-me - e continuo o caminho.

sexta-feira, abril 13, 2012

Abraço

Hug. Abbraccio. Étreindre. Umarmen. Alios amplectaris.

Tantas formas diferentes de o dizermos, e potencialmente qualquer um@ o perceberia.

Em dia de nostalgia, é isso que nos ocupa a mente*

domingo, abril 08, 2012

Dia 30: A preto e branco



Via del Pratello, pomeriggio e sera @ Bologna, 2012


Fim do desafio. A preto e branco, que descobri ser o melhor modo para fotografar em dias de neblina ou em horas tardias... A preto e branco, como uma parte da nossa imaginação antiga e doce, em que as cores podem descansar. Se houvesse cores, nestas fotos veríamos entre o amarelo e o vermelho, il rosso della città rossa.

Até breve :)

quinta-feira, abril 05, 2012

Dia 29: Novidade


Caderneta de cromos @ Bologna, 2012

Novidade que já deu para perceber: estou em Bologna. Voltei à minha segunda cidade, nela vou conhecendo algumas pessoas e reencontrando outras. Casa de estudantes, muita coisa que não recordava (e que, no general, não é novidade, mas a agradável surpresa de por vezes ser mais novinha outra vez). Hoje trouxe a prenda de páscoa para o povo todo cá de casa: uma caderneta para colar os cromos da WWF que distribuem gratuitamente no supermercado mais próximo. Fez tanto sucesso que passámos pelo menos uma hora em torno disto, a distribuir autocolantes uns pelos outros, como não fazíamos aí há uns 10-15 aninhos :) Na realidade, alguma coisa é nova? Ou é a vida que nos regala renovadas situações que despoletam um sorriso na alma?

terça-feira, abril 03, 2012

Dia 28: A minha agenda


Agenda @ Bologna, 2012

Há anos que sou fiel ao meu querido Moleskine capa negra, dura ou suave, página em branco ou agenda. Faz parte do meu imaginário-feito-vida *

quinta-feira, março 15, 2012

Dia 27: Algo vermelho


Casaco vermelho @ Sintra, 2012

Demorei muito tempo a convencer-me para comprar algo vermelho. Gosto da cor, mas há muito que me parecia forte demais para mim. Assim que tive este casaco, tornou-se numa das minhas peças de vestuário favoritas :) Por vezes, só dando o passo no vazio é que chegamos a um sítio melhor. Muito materialisticamente (e não só, porque esta cor sobe a moral), o primeiro-algo vermelho foi prova disso!

quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Dia 26: Tradição



Festa da melhor família do mundo no fim de curso @ Porto, 2008

Houve (tempo verbal sob consideração) uma fase substancial da minha vida em que me afastei muito de um conjunto de tradições. Uma delas foi a tradição académica. Custa-me encarar alguns rituais colectivos. Mas então quando chegamos a rituais de praxe que envolvem, a meu ver, a submissão indigna voluntária como passo necessário para se entrar num grupo, "está o caldo entornado". Declarei-me anti-praxe na primeira semana de aulas, com tudo o que isso envolveu de etc. etc., nunca sonhei ter um traje, e eis que chega a semana da queima no meu último ano e deu-me um aperto. No metro do Porto, toda a gente tinha flores nas cores de curso e faculdade. Toda a gente se ria e seguia em grupo. Sei que fui ter a casa da avó e desabafei entrelinhas que, por uns minutos, tive pena de ter perdido o que se sentia neste ritual. A quem o fui dizer...

No dia em que apresentámos o projecto curricular e respectivas críticas, formalmente um dos dias mais marcantes do curso de educadores de infância, estranhei que, com pedido ao telefone, ninguém pudesse jantar lá em casa; mas ok, eu é que tinha desvalorizado aquele percurso.

À noite estávamos lá quase todos - e os que não estavam tinham escrito nestas fitas, azul e rosa, e tudo estava preparado ao milímetro. Não fazia a mínima ideia, nunca teria feito a mínima ideia, e ainda hoje pensar neste dia mexe muito (positivamente) com a minha estrutura :,) Foi, a meu ver, a melhor tradição-surpresa de todos os tempos!


No topo de uma das torres @ Bologna, 2009

No ano seguinte, assim que pude, fui cumprir a única promessa que fiz sobre esta tradição: se não vou andar na praxe, nem trajada, nem em cerimónias de bênção e queima das fitas, nem com coroa de folhas, nem com fotos ridículo-cómicas pelo caminho, então vou pelo menos subir uma das Duas Torres quando acabar o curso. Fiquei doente e tudo, mas ai de mim se não o fizesse... (ainda tinha de estudar a vida toda, sei lá!)

terça-feira, fevereiro 28, 2012

Dia 25: Guilty pleasure


Chocolate @ onde quer que esteja, desde que tenha o filme ou o doce


Pois é, não sei identificar qual o maior guilty pleasure, se o chocolate-filme, se o chocolate-doce ou se será ver este senhor cherokee no grande ecrã. Guilty! :)

Este era - no passado! - o meu verdadeiro guilty pleasure: http://www.flickr.com/photos/30719244@N06/3352771187 (less guilty now...)

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Dia 23: Família


Dos Aires Mesquita e seus Mais-Que-Tudo @ Lisboa, aniversário da Isabel 2011

Não está perfeita, mas foi o mais recente momento de grande reunião com possibilidade de foto que esta parte da família teve. Grande família :) *

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Dia 22: Nostalgia (II)


No tempo dos grandes gelados @ Algarve, algures pelo fim dos anos 90

A segunda versão da nostalgia: não sei se saliente os olhos vivos de quem come um gelado daquele tamanho, a cor de pele com um mês de mar e sol, o interminável casaco de ganga ou, sabe-se lá, o tamagotchi! Nostalgia do "antes de ter um telemóvel" - e, indubitavelmente, dos grandes gelados equivalentes a enormes verões. Nostalgia boa :)

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Dia 21: Reconfortante


De Seteais ao Palácio da Pena @ Sintra, 2009

Reconfortante é esta subida, este postal dinâmico, que permite recordar com ternura o dia em que foi tirada esta foto :)

domingo, fevereiro 12, 2012

Dia 19: Sorriso


Por trás de um grande sorriso e alguns pulos de encantamento @ Sintra, 2012

Surpresas destas são de uma maravilha incontornável e de uma simplicidade ímpar. Não é preciso mais, uma casa fria torna-se no mais docemente quentinho com um ramo de flores, uns travesseiros de Sintra e o sorriso imensamente aberto que provocam... Sou ou não a pessoa mais feliz do mundo? Vivo o melhor amor do mundo * Sorriso grande, grande, grande :)