terça-feira, dezembro 31, 2013

Ei-lo, o post de 31 de dezembro

Cliché bonzinho, escrever um post hoje. Estou a pensar nele há imenso tempo, mas sem saber o que dizer. Vai pouco ensaiado, bruto, cru, como se queira, mas vai. Vai com o ano.

Entrámos em 2013 a cair das escadas. Depois houve viagens, lutas, milagres, muita força em quem se vê vulnerável. Demos a volta, estamos cá, juntos onde quer que seja. E as prendas: amigos novos pelo mundo, amigos antigos reencontrados, muito acolhimento em casas desconhecidas, um felino que nasceu este ano e veio provar que a nossa casa estava incompleta. Mesmo assim, a maior prenda foi a força que nos manteve a todos aqui.

Que 2014 traga magia boa, ternuras, cura, concentração, mais momentos de música e de letrinhas, muito amor e amizade. Que o tempo, no ano que vem, seja o presente - e ganhemos o que precisamos para conquistarmos o medo, o sonho e o comando das nossas próprias vidas.

Abraço apertado, mas com ar de sobra*

segunda-feira, julho 29, 2013

Um dia, quando se vai viajar sós-solidários pela primeira vez

O meu dia foi no verão de 2006. Fazia 20 anos no dia 22 e partia dia 23 de madrugada. Não ía sozinha, mas iria ficar por minha conta. Para tal tinha de aprender uma língua nova, arranjar casa nessa língua e aprender tudo o que é necessário ao nível do desenrascanço tendencialmente autónomo.

Estava em pulgas. Queria sair do sítio há muito tempo. Queria ir para aquele sítio há alguns anos. Sonhava - e fi-lo tanto! - poder rir e chorar desalmadamente em ruas que me desconhecessem e me permitissem essa liberdade.

A festa de anos, no Porto, era sagrada. Nesse ano marcava a despedida. Sentia-me estranha; nunca tinha saído daqui por mais que uns dias. Era uma ansiedade esperançosa e amedrontada, um sorriso tremido de mala pronta há algum tempo, o mesmo sorriso nas caras adultas que me rodeavam. Tínhamos o código do "ninguém desfaz ou a forma cai", e ninguém desfazia, e a forma não caía. Estávamos todos bem.

A uma certa altura, os pirralhos - ainda eram pirralhos - dos meus primos chamaram-me para me darem uma prenda. Tinham escrito e ilustrado uma carta, no alto dos seus 11-12 anos, para me dizerem que a viagem ia correr bem, que gostavam de mim e iriam sentir saudades. Foi um soco abraçadíssimo em tudo o que eu era naquele dia.

A cozinha estreita na casa da Prelada não bastava para aquele rompante emotivo. Eles não percebiam, não queriam provocar aquilo, mas mais ninguém tinha aquela substância tão verdadeira em poucas linhas. Quem vai embora tem medo da saudade como a rocha teme a água que lhe bate sem tempo. A rocha não recua, a pressão não a demove, mas sabe que a água pesa e irá alterá-la. A sua forma será diferente, depois; parecerá mais esculpida. Assim faz a viagem na pessoa.

Os meus primos não sabiam, nessa altura, que a honestidade fazia daquilo. Abraçaram-me durante algum tempo, como faziam antes, quando me viam assim. Os adultos dissiparam-se quase todos nesse instante. Ficou a baixinha à minha frente, a fazer com que me recompusesse e voltasse à sala, sem a carta.

Os minis cresceram muito. 



Esta carta torta foi escrita a pensar nos meus primos e dedicada à menina chilena a 29 de Julho de 2013. Hoje, 1 de Fevereiro de 2016, dedico-a ao menino catalão * boa viagem, baixinho!

segunda-feira, junho 03, 2013

Os extravagantes das 5h30 da manhã

ousam calcorrear a rua escurecida.
Fazem-no sem qualquer pudor ou audição,
compenetrados passo sobre passo,
como se a rua fosse apenas
extensão das suas pernas.
Quando muito,
dirigem a palavra à companheira do lado.

Vendo bem, quase só há companheiras
caminhantes nas ruas de Lisboa
às 5h30 da manhã.
Têm a pele escura
e seguem rápidas e acaloradas,
de chinelos e mangas curtas
e o cabelo entrançado ou preso.
Levam sacas na mão,
trocarão de roupa na chegada ao trabalho.

Pelas 6h o dia aclara
e há menos transeuntes no passeio. 
Passam apenas carros e carrinhas.
O dia terá de aclarar ainda mais
para que pessoas mais claras
calcorreiem esta rua.

O dia aquece
mas elas trarão mais casacos e menos sacas.
Virão em passo mais lento,
aquele passo de quem usufrui 
de um espaço já preparado.

domingo, junho 02, 2013

O céu acinzentou

dentro dos seus olhos.

Mas todos deveríamos saber
que aquele homem envelhecido,
de pronunciada ruga na testa,
quando era bebé
adormecia com festas entre os olhos.

Ele está curvado,
as costas cederam ao cansaço,
as mesmas costas que suportaram
o salto ao cavalo quando era miúdo.

As mãos tremem-lhe,
espalham açúcar fora do café.
São as mesmas que exploraram
o infinito corpo feminino na juventude.

Os braços fraquejam,
já não têm potência,
mas houve um dia em que os braços choraram:
quando pegou no filho pela primeira vez.



08-05-2013, Lisboa

terça-feira, abril 30, 2013

EcoFemina (no quintal)


Não me venham com tretas de que é fácil ser-se ecologista, feminista, entre outros de activista, levar a vida tranquila e equilibrada e ter sempre a cabeça no sítio. Em honra a tal dificuldade, vou tentar escrever uns folhetins sobre EcoFemina.


EcoFemina vive na terra porque calhou, ainda que várias boas pessoas digam que há um espírito semi-autónomo com alguma responsabilidade nesse assunto. É Eco porque é da terra, sente ser mais terrena do que consegue entender por palavras estudadas, gosta do mar e do ar para depois voltar a descalçar-se e pisar a terra. Enquanto Eco vai aprendendo que cooperação e competição existem em igual medida, que entre simbiose e parasitismo a distância pode ser curta e que estas acções servem para responder a necessidades fisiológicas ou tipo-existenciais como alimentar, desalimentar, reproduzir, manter a vida e criar beleza que justifique aturar tudo o resto. Isto em estruturas tendencialmente colectivas, ditas inter-dependentes, nas quais tudo tem função, cresce para vir a ter ou vive dependente de quem tenha. É Femina porque fêmea fica mal e feminina não é particularmente aplicável. Evite-se o cor de rosa da questão, trazendo um bocadinho de bruto (em dias bons diamante, nos outros pedra dura enraivecida) e a necessidade de bater o pé por aquilo que continua mais distante do outro lado. Por isso, EcoFemina vive na terra com corpo de mulher, lutando pela terra e pela mulher. Entre outros.


EcoFemina no quintal

São sempre fascinantes, os sonhos das crianças, sobretudo quando não são formatados pela publicidade do natal ou pelas expectativas familiares. Pois o sonho antigo de EcoFemina era voltar à terra que nunca conhecera. Assim que pôde fugiu da grande cidade e procurou uma casa com quintal, no meio do verde. Encontrou-a.

Em bom esquema de espelhos, casa e quintal demonstraram-se tão brutos quanto EcoFemina: "dá para fazer muita coisa, mas é preciso limar os cantos, dar-lhe forma e controlar-lhe o percurso". Com todos os santinhos, esta receita nunca resultou. Estude-se melhor a questão, que a gente interage com a natureza há uns bons aninhos e alguém há-de ter chegado a boas conclusões sobre casas com quintais antes de EcoFemina; e estudou, ouviu bastante gente, foi a formações e tentou, falhou, tentou outra vez, falhou outra vez, tentou outra vez e esperou melhores resultados.

FALHAR: agir sem obter o resultado pretendido. Exemplos: pôr sementes à terra e vê-las a serem comidas por pássaros; cobrir sementeiras com rede, ganhando aos pássaros, maravilhar-se com o crescimento da planta e vê-la a ser destruída em dois dias por caracóis; dispor as plantas em modo tal que afastem a maioria das pragas e cair um temporal que manda o puzzle todo abaixo.

Uma das coisas que a casa com quintal demonstrou a EcoFemina foi que o equilíbrio ecológico é imprescindível. Mas não há receita única; é preciso perceber a dinâmica do sítio e potenciar os factores de equilíbrio. Trocando por miúdos: um dia, EcoFemina viu um rato. Sendo ela criatura urbanita e vivendo o sonho neo-quase-rural, o evento não foi muito agradável. Estava a regar o quintal quando um animal castanho do tamanho de um coelho (ou seja, uma monstruosa ratazana) se mexeu. Em pânico, atirou-lhe um jacto de água para o afastar, e só nesse momento aprendeu que o rato foge mas a ratazana ataca. O monstrinho veio na direcção da água – e, portanto, na direcção de EcoFemina, que perdeu as estribeiras, guinchou que nem criatura rosa choque, fugiu do quintal, fechou o pátio, as janelas e até as cortinas – não fosse o monstro ficar à espreita do outro lado. Após profundo monólogo com rasgos de emoção raivosa, durante o qual se questionou sobre a porra do motivo de uma pessoa sair da cidade, viver no frio, mandar sementes à terra e apanhar ratos em troca, uma ideia mais iluminada ocupou-lhe o pensamento. E que tal começar a deixar comida para os gatos vadios? Cheiro de gato afasta rato, sem venenos, sem gaiolas, potenciando o equilíbrio ecológico!

EQUILÍBRIO ECOLÓGICO: estado dinâmico em que as funções e necessidades dos seres presentes se complementam e controlam recíproca e harmoniosamente. Exemplos: as flores chamam insectos com funções tão preciosas como a polinização, mas alguns insectos em demasia destroem as plantas – os pássaros vão controlando o número de insectos alimentando-se deles; surgem roedores sem que se perceba qual a sua função, mas a presença dos gatos afasta-os – até que um dia, expressando a sua admiração, os gatos caçam roedores e dedicam-nos a EcoFemina, que se enoja profundamente e deixa de perceber outra vez o que é o equilíbrio ecológico.

EcoFemina não é aquela mulher robusta tão resistente como o próprio campo – não, fica com alergia a cada vez que mexe na terra. Também não é a deusa do mistério natural de produção – só aprendeu a diferença entre erva-cidreira e urtiga porque lhes tocou com os dedinhos e uivou que nem um lobo, e a mulher não é lobo, e quando uiva parece improvável que queira ligar o seu chakra à energia universal, liga-se antes à dor universal de quem faz o que não sabe. Mas felizmente existem plantas aromáticas mais resistentes que as intempéries e que mostram a EcoFemina como é fácil reproduzi-las. Ela aprende e vai avançando, errante e coxa. Procura recolher as sementes para plantar noutra altura, pensando na tia Vandana, mas sendo-lhe difícil chegar à espiritualidade da questão. A lição ancestral é conhecida: desrespeita-se a natureza e desrespeita-se a mulher, se as duas lutas se unirem poderão ganhar uma força imensa. Uma grande incursão produtiva, entre sementes e barrigas. Plantas que nunca são iguais, mesmo dentro da mesma espécie, e mulheres que procuram ter lugar para as suas diferenças. É em geral neste momento que um insecto entra na luva e pica EcoFemina.

sábado, abril 06, 2013

Sair de casa,

fugir e chegar a casa.

Sentir assim, monstruosamente,
com o dentro que recorda que estamos aqui.

Quem poderá dizer adeus em terra firme?

A terra mexeu-se.
A calma envergonhou o vento.
Ele não voltou a espalhá-la.

Paredes levantadas, sonhos mais altos.
Procedemos ao seu sufoco com a maior ternura do mundo.

"Lá fora corremos com a brisa", disse-me.
Sonhar a praia.
Apagar o sonho,
viver o cómodo.

Prolongar o praticado até à exaustão
e - o espanto! - um dia
sair de casa,
fugir e chegar a casa.


28-03-2013, Bolonha

quinta-feira, abril 04, 2013

Pendulares somos nós

os que se beijam intermitentemente nas garagens de camionetas
os que se beijam melancolicamente nas estações de comboios
os que se beijam de alma sabe-se lá como nas passagens de hospital

Pendulares somos nós
que nos beijamos sempre, em movimento,
em cadência, em risco,
em esperança, em vão

Pendulares somo nós
que calcorreamos parte do mundo
criando laços, abraços, melancolias
e melodias infinitas
quais fundos de novos beijos

Pendulares somos nós
que beijamos perdidamente
e que choramos cada movimento de beijo perdido


17-03-2013, Porto

quarta-feira, março 06, 2013

Não-foto tipo realista

Na Avenida da Liberdade estava uma senhora com carteira de marca, chapéu distinto, saia pregada e collants cosidos e rotos em vários sítios. Foi, provavelmente, uma das presenças mais verdadeiras que encontrei.

A verdade daquela senhora incluía tanto a maquilhagem irrepreensível quanto os buracos inusitados pelas pernas fora. É ela, a Avenida da Liberdade. A Pans&Company das senhoras em casacos de pele. Vi-a no momento esquisito de não saber em que língua pensava, ao regressar das aulas de italiano pela Salitre fora, chegando ali. Ando sem perceber ao certo o que é Lisboa, mas aquela é a sua avenida central, a mais poluída, traficada e percorrida das vias alfacinhas, com o terno nome de Liberdade.

Uns metros antes da senhora estavam alguns jovens a pedir contribuições para ajudar cães de rua. Mais acima, um labirinto de caixas de cartão - casa à porta de uma loja vazia, o lugar (de dia desabitado) de um sem-abrigo da zona. Mais abaixo há muitos teatros, restaurantes e hotéis finos, na outra margem surge até a loja do cidadão. Nos intervalos, entre semáforos e segmentos de verde, metálico e pedra, há várias lojas, sobretudo sem preços na montra.

A Avenida da Liberdade é o realismo na performance de Lisboa. O luxo vazio mas central e de pobreza à porta, o fumo da imensa passagem, o pedaço-jardim arranjado, as meias rotas. Aquela senhora, de costas mais direitas que as minhas, era do mais verdadeiro que há. As pernas estavam inchadas e pesadas. Subiu uma escada rolante à minha frente, não a fotografei. 

domingo, fevereiro 17, 2013

Falta primavera

nos olhos nublados e frios,
na tempestade indomável como a alma
e na alma das coisas que a não têm.

Faltam estações além das de comboio,
estruturas circulares onde uma pessoa vai e volta
como aqueles suspiros que podem repetir-se na manhã seguinte.

Há demasiadas máscaras para tão maus actores.
Muitos actos para um guião subdesenvolvido.

Escasseia o sol na pele morena empalidecida, 
tanto que por mais que a água nos espelhe
pouco ou nada reflecte em brilho.
Tornámo-nos pálidos e baços, 
trupe anémica engolida em lã.

Bendita primavera das doces flores,
aproxima-te e leva o turbilhão de vento
que ele levará o grito adoentado
que por sua vez surgiu da revolta inactiva.

As pessoas estão cansadas, primavera.
Ombros nus desejam abraçar-te.

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Sobre a mulher-propriedade

"Quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impôr à outra a sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre em tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se, pois, que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu realizar essa vontade?" (Beauvoir, 2008: 99)

Beauvoir conta-nos que, do período agrícola até à actualidade do seu ensaio, é possível interpretar um conjunto de visões sobre a mulher. Nessa evolução há um carácter relativamente estável: a mulher-propriedade sob domínio do homem.

1. A mulher que desempenhava o trabalho campestre permanente, já que ao homem cabia o trabalho ocasional de defesa, caça e pesca.
2. A mulher que se reproduzia, desempenhando um papel protector e nutritivo, podendo tornar-se autónoma mas não se bastando dessa estagnação natural enquanto espécie; a mulher dá a vida, mas o homem é-lhe superior já que é ele que arrisca a vida na guerra.
3. A mulher na visão da posteridade: o seu papel biológico vê-se subjugado ao valor da propriedade (privada) em transmissão entre gerações; a mulher que procria para criar herdeiros.
4. A mulher serva de senhores, simultaneamente reprodutora e cumpridora das tarefas domésticas, que é subordinada pela exaustão e, mais tarde, pelas instituições.
5. A mulher do mistério produtivo (na concepção e nas colheitas) e o homem que passa a superá-la no domínio da técnica, no aparente controlo sobre a natureza.

"Assim, o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem o resultado de uma revolução violenta. (...) Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe o seu destino" (Beauvoir, 2008: 118). O pacifismo (com momentos e situações pontuais de excepção) da mulher-propriedade enquanto dominada (propriedade de outrem) e da mulher que se dedica à propriedade terrena constante (trabalho doméstico, no campo, na criação dos filhos).

Venha um salto no tempo, mas recomendo que leiam a retrospectiva histórica e filosófica de Beauvoir. Passo aos dias que acompanharam o meu crescimento. Os dias em que os nascidos quando "O Segundo Sexo" foi escrito já eram adultos e, por vezes, pais. Já evidenciavam a alteração de estatuto da mulher, a emancipada que pode viver autónoma (ainda que com rendimentos inferiores aos do homem), divorciar-se, votar, cometer um crime e ser julgada como pessoa (reduzindo a imputação de género na justiça). Tudo isso foi escrito e por mim lido. O resto partiu da observação do jogo escondido, das legitimidades em acção que permeavam as relações de quem fui conhecendo.

Crescemos sob matriz judaico-cristã, tantas vezes não apenas ao nível de valores como também sob a mão prática da religião institucionalizada. A obediência era conveniente e um dos meios rápidos de a conseguir era face ao medo patriarcal da autoridade: medo do pai, medo do polícia, medo do director e até, imagine-se, medo do papão (significado do escuro, do que não vemos; já as bruxas podiam ser vistas e causavam bem menos receio). A consequência da não obediência tornava-se, assim, previsível: punição por mão grande, por voz grande, por aqui que não vislumbramos e, por isso, não podemos enfrentar.

Garantir o desequilíbrio e a falta de reciprocidade através do privilégio da parte dominante - tática imediata e eficaz. O que nunca entendi foi que tantos pensassem ser directa a relação entre medo, obediência e respeito ou educação. Pois se uma criança, crescendo em homem e mulher, aprende a ser propriedade do medo e seus detentores, como poderá emancipar-se sem fugir ao pacifismo da sua dominação? Legitimando a sua vida adulta como novo papão? Criando um matriarcado violento como o exemplo patriarcal em que cresceu ou que foi observando em quem rodeava? Simulando a violência emancipatória e continuando a legitimar, nas escondidas de quatro paredes, ser propriedade de outrem?

Não creio que a dominação homem-mulher esteja muito afastada do que se legitimou, ao longo dos anos em que cresci, sobre a suposta superioridade de adultos sobre crianças, de padres sobre praticantes e outros religiosos, de patrões sobre empregados, de professores sobre alunos, entre outras dialéticas em que a autoridade pode passar a autoritarismo num piscar de olhos e a legitimidade continua a abraçar a vida dos primeiros. Creio, por outro lado, que se a parte humana se sobrepuser à parte proprietária - a pessoa que é e cresce, acredita, trabalha e/ou estuda, vive - ganhamos nova hipótese de reciprocidade na luta partilhada do desenvolvimento. 

Aquela que se recusa a ser propriedade de outrem e até, imagine-se, que luta para não ser propriedade das suas propriedades terrenas - materiais (casa) ou de vontade do seu espírito activo (papéis que se atribui no trabalho ou activismo, por exemplo), não passa de mulher a fêmea; cresce e abandona o seu lado mais objecto no sentido do de sujeito, de algo que supera o seu imediato ou futuro previsto. Existir supera essas propriedades. Existir como mulher requer mais luta que a média.

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Sobre a mulher agradável que tem (vergonha de) um corpo

Sento-me ao sol no pátio caótico que demorarei a arrumar. Apoio o caderno n'«O Segundo Sexo [I]» de Simone de Beauvoir, ao qual regresso uns bons anos depois de o ter encontrado. Falta uma semana para dia 14 de Fevereiro, dia V - não só de S. Valentim, será também dia de reivindicação mundial pelos direitos das meninas e mulheres. Sugerindo uma semana de reflexão sobre estes V-direitos, começo por pensar no direito ao corpo.

Creio ser universal a visão de que o corpo é um direito - da atribuição divina de um corpo para existência terrena até à consideração do corpo enquanto locus de marca no correr do tempo; o corpo que materializa a vida, o corpo que caminha, o corpo em que o caminho se tatua, o corpo que morre por natureza ou desígnio. A questão não será se o corpo é um direito; é mais: o corpo é um direito de quem?

A resposta verbal pode ser mais imediata que a resposta vivida. Não tenho qualquer dúvida em trazer para as letras: o direito sobre o corpo é detido pelo próprio, pela pessoa-corpo-espírito-mente que o vive. A dúvida surge na retrospectiva: será que sempre confiei nesse meu direito e nunca o desrespeitei, emprestando-o à voz e acção dos outros? Não, nem sempre assumi esse direito.

Não creio que se trate somente de um problema feminino, mas sim de uma questão generalizável a diferentes grupos potencialmente mais vulneráveis. Quando se coloca o problema do direito sobre o corpo, o meu primeiro pensamento recai sobre as crianças. Que direitos lhes atribuem as estruturas colectivas no que toca à sua salvaguarda corporal? No caso português, estatutariamente, muitos direitos lhes são atribuídos e reconhecidos. Pude observá-lo na legislação sobre serviços sociais para a infância e seu atendimento educativo, há uns anos atrás. Mas do espectro legal à realidade praticada há sempre espaço de viagem, e a viagem pode tornar-se particularmente tortuosa nos espaços mais escondidos: a criança dentro da sala, a criança dentro de casa, a criança onde pode não ser vista. E aí não haverá lei que nos salve; para esses lugares escondidos, acredito que a única salvação é rever o que é ou deixa de ser legítimo na nossa acção.

A violência ainda é legítima. A repreensão física sobre quem não tem estrutura possível para responder, ainda que actualmente tenha menor aceitação, continua a ter muita. A formação do respeito ainda se confunde muito com a criação do medo, seja por meio físico ou verbal. A educação é imprescindível e ainda não se domina a sua versão respeitosa, assertiva e não violenta. A família e a escola são geralmente os guardiões do direito sobre o corpo das crianças e muitas vezes não sabem salvaguardar esse direito, desprezando até a voz da própria criança. O seu corpo, através do qual aprende ao explorar o mundo, torna-se no primeiro saco através do qual duvida sobre a dignidade da sua pessoa.

O corpo vergonhoso surge muito cedo. Rapidamente as crianças se apercebem que dizer magro, gordo, caixa de óculos, perna longa, perna curta, marcado, descabelado, juba de leão, olhos tortos, dentes esquisos [e por aí fora] tem um impacto nos outros. A partir daí agem e reagem, são mais ou menos legitimadas e reforçadas pelos adultos que as rodeiam, resolvem ou deixam por resolver uma série de questões. Mas, enquanto crianças, ficam tendencialmente na versão parcial da resolução - ao não deterem e dominarem o direito sobre o seu corpo, estes dilemas (sobretudo se surgirem num contexto de pouca confiança própria) perpetuam-se na atribuição da resolução ao outro. Uma pessoa será bonita, inteligente e agradável se o outro a reconhecer como tal.

O "agradável" foi posto de propósito para abordar a questão feminina. As mulheres não são crianças grandes, mas a imputação do "papel agradável" faz com que muitas vezes se assemelhem na infantilidade emotiva ligeirinha que se lhes legitima. Dizia Beauvoir sobre Stendhal: "Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama na sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a ideia de um «eterno feminino» parece-lhe pedante e ridícula. «Pedantes repetem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo, e os homens mais solidez; que as mulheres têm mais delicadeza nas ideias, e os homens maior capacidade de atenção. Um basbaque de Paris que passeava outrora pelos jardins de Versalhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas.»" (p. 337). A mulher agradavelmente podada é a que responde aos mitos do feminino: é a carne da natureza, simultaneamente húmus e beleza sensível, detentora das chaves da poesia, mediadora entre o natural e o sobrenatural, votada à imanência passiva da distribuição de paz e harmonia, o outro que serve à realização do homem (palavra de Beauvoir). Além destas versões da mulher, há a fêmea.

Queria falar sobre o corpo. Creio que o corpo reflecte as mesmas categorias da mulher agradável. O corpo agradável vai tendo standards diferenciados, já foi mais arredondado, agora é emagrecido, relativamente alto e sob a moda do étnico - não importa só a barbie 34 loira branquinha, também pode ser africana ou asiática e de tonalidades variáveis. Mas, seja como for, terá de ser consciente sobre a sua carne: revelando-a ou escondendo-a na noção de que isso pode provocar acções de realização por parte do homem. Domando o corpo para que diga "sensível" ou até "transcendente". Passar de fêmea a feminina.

A vergonha começava por ligar-se à não conformidade com o standard 34 simétrico, com a bacia que não encaixava na forma pretendida para as ancas, com a dificuldade de concretização física de algumas actividades e a exposição que daí derivava. Somavam-se cicatrizes tatuadoras de muitos momentos e actividades hormonais desconcertantes. Falo da minha vergonha. Do facto de só ter conseguido comprar uma saia curta em 2007, três anos depois de começar este blog, e de ainda hoje só a conseguir usar com meias opacas, "para que não se veja". Falo da dificuldade em sair à rua com um decote, "porque é tentador" - e quando alguém manifesta a tentação fico tão desorientada que o corpo entra em colapso, viro costas, volto a casa, troco de roupa e saio de olhos no chão. Nestes momentos, não respeito o direito ao meu corpo. Contribuo para a paz violenta, aquela em que os olhos alheios nos controlam e depois fica tudo calminho. Contribuo para a poesia do silêncio improdutivo, aquela poesia que na realidade se basta em rimas cruzadas e sempre consoantes.

Vivo num país que faz parte dos 199 países que dia 14 se levantam para dizer "viva a mulher" e não "vergonha de mulher". Sugiro que todos/as o celebrem e se coloquem alguns "e se?". Por exemplo: e se não caísse na tentação de dizer à pessoa aqui ao lado "assim estás bem, fica-te bem"? É que isso pode querer dizer que antes estava mal - da mesma maneira que dizer "hoje estás particularmente elegante" não nos deixa pensar que alguma vez não estivemos bonitos/as - isso é-se, não se está. E se repetíssemos que o corpo faz parte de um conjunto mais vasto e autónomo, não sendo um vegetal que aguarda acção externa? Talvez a diferença mentalizada entre homem e mulher se tornasse não tão mais que um conjunto de diferenças corporais - sobre isso, como sobre a personalidade e o espírito activo, somos livres. Quando a soberania individual sobre o corpo for real, o abuso sexual será uma miragem longínqua. A legitimidade é uma coisa construída e temporalmente relevante; sugiro que se deslegitime a violência e que se legitime a soberania sobre o corpo. Já perdemos tempo demais.



Simone de Beauvoir (2008) O Segundo Sexo, Lisboa: Quetzal (ed. original 1949)

terça-feira, janeiro 29, 2013

Poetrindade

Há anos que não sou atingida pela bendita trindade da poesia: palavra doada, empenho e musicalidade. Um dia talvez volte lá.

A quem possa querer ir espreitando poesia portuguesa: http://portodeabrigo.do.sapo.pt/

A quem pouco conheça poesia italiana, partilho algumas palavras semi-lascivas que ainda não me permitiram que as traduzisse. São tão da língua delas que traduzi-las me parece pecado.



ti esploro, mia carne, mio oro, corpo mio, che ti spio, mia cruda carta nuda,
che ti segno, che ti sogno, con i miei seri, severi semi neri, con i miei teoremi,
i miei emblemi, che ti batto e ti sbatto, e ti ribatto, denso e duro, tra le tue fratte,
con il mio oscuro, puro latte, con le mie lente vacche, tritamente, che ti accendo,
se ti prendo, con i miei pampani di ruggine, mia fuliggine, che ti aspiro, ti respiro,
con le tue nebbie e trebbie, che ti timbro con tutti i miei timpani, con le mie dita
che ti amano, che ti arano, con la mia matita che ti colora, ti perfora, che ti adora,
mia vita, mio avaro amore amaro:
io sono qui così, la zampa del mio uccello, di quello
che ti gode e ti vigila, sono la papilla giusta che ti degusta, la pupilla che ti vibra
e ti brilla, che ti tintinna e titilla: sono un irto, un erto, un ermo ramo, io che
ti pungo, mio fungo, io che ti bramo: sono pallida pelle che si spella, mia bella, io,
passero e pettirosso del tuo fosso: io la piuma, io l'osso, che ti scrivo: io, che ti vivo:


(1., L'ultima passeggiata, 1982, Edoardo Sanguineti)

quarta-feira, janeiro 16, 2013

Bello essere Habesha!


Caros amigos, colegas, familiares e companheiros ainda desconhecidos,
criar um filme documentário em Itália em 2012 (e produzi-lo entre Itália e Portugal) não foi o desafio mais fácil, como se pode imaginar. Mas nós (Akio Takemoto, Enrico Turci e Inês Vieira) decidimos tentá-lo apesar de tudo, sem financiamento, com pouca experiência mas com muita paixão. O resultado é "Bello essere Habesha", sobre as comunidades etíope e eritreia em Bolonha, Itália: 




Decidimos não ceder aos elementos adversos que emergem inevitavelmente quando nos propomos criar um documento audiovisual. Tentamos também não ceder àquelas forças que tenderiam a pôr-nos atrás de uma secretária, a trabalhar sem gosto e com rendimentos complicados. Resumidamente, decidimos que nesta vida gostaríamos de continuar a divulgar a nossa investigação, a fazer documentários e até outros filmes; e esperamos que concordem connosco que o mundo ainda precisa destas iniciativas.

O que vos pedimos não é dinheiro (nós, "pobres idiotas"), mas simplesmente que partilhem pelas redes sociais ou por email o trailer deste documentário. Temos consciência de que possivelmente não iremos longe com a iniciativa – mas não há nada como abrir as portas das possibilidades.

Obrigado a todos e todas,
Akio, Enrico e Inês

PS – Não disponibilizamos o documentário na totalidade visto que alguns festivais e competições exigem que os documentos audiovisuais nunca tenham sido publicados; mas aos que possam estar interessados ou apenas curiosos, poderão acompanhar o nosso blog (http://belloesserehabesha.wordpress.com) ou entrar em contacto connosco (belloesserehabesha@gmail.com) para saberem como participar ou organizar projecções do documentário "Bello essere Habesha".