sábado, dezembro 31, 2016

Viso

Escadas, escadas e escadas. As primeiras eram mais sombrias, subiam-se a correr - excepto a partir do dia em que a Alicinha me parou para oferecer flores do seu quintal, umas horas depois de me ter visto a arrancar uma daquelas florzinhas que cabiam nos dedos para fazer de conta que era um anel. Um lance, cheiro forte a lixívia - e paro na Gininha, ainda hoje parei, ó minha filha estás tão crescida e linda, és igual à tua mãe, ano bom, querida! Mais um lance, cada vez mais silencioso, outro, e estamos em casa.

Cresci com uma bicicleta amarela herdada do primo de França, não tinha travões, o que me deu o mau hábito de sair em andamento e deixá-la travar no muro mais próximo. Era o seguimento das garagens, as garagens dos carros, das plantas e das mesas postas com o portão aberto na noite de São João. O muro dava para a casa mortuária, por isso às vezes a bicicleta assustava algumas pessoas cabisbaixas, vestidas de preto, que olhavam para mim sem me verem e murmuravam uma semi-oração-semi-rabugice. Aí andava ligeirinha mas suave, suava para arrastar o portão e guardar a escandalosa, e como o portão também não era discreto, a avó ouvia e redobrava a atenção para o meu regresso.

Escadas, escadas e escadas. A meio caminho de cada andar há uma espécie de varanda - em miúda perguntava-me porque é que no nosso prédio ninguém punha lá uma mesinha, para ler ao sol - e eu tentava abrandar o passo para perceber, de ângulo mais elevado, o que se passava do outro lado do muro. E a cada abrandamento - Ana Inês! - pois, acelera.

Enérgica, infinitamente enérgica. A casa está sempre a superar o impecável mas, aos seus olhos, pode sempre melhorar. Ó 'vó, estás a arrumar outra vez?, ainda ontem se arrumou! - Anda dar-me uma mão que tive uma ideia durante a noite, mas não contas a ninguém! - e lá mudávamos a ordem dos móveis, ou lá guardávamos as coisas para novas obras, para a casa crescer e respirar. De todas as que me lembro, nunca contei a ninguém.

A cozinha. Janela aberta nas quatro estações (faz frio no Porto?), o vapor é muito. O cilindro que obriga a disciplinar o banho e logo ao lado o fogão. Café de assentar, a mistura da Sanzala acrescentada de café puro, a banca sempre a cheirar a café, guardado na parte de baixo. A cozinha sempre foi pequena e nunca percebi como é que de lá saía tanto doce de tomate e marmelada, os cheiros do outono. Esses e os pratos todos que guarda a memória portuense - e lisboeta, e parisina. É uma casa modesta dos anos 50/60, cabemos dezenas lá dentro há várias gerações, e aposto com o infinito que nenhum lá-passante esqueceu o momento em que fechou os olhos e saboreou as pataniscas, as tripas, a cabidela ou até a parmigiana de chèvre, quando a neta mais velha se lembrou de virar vegetariana.

Ao fundo do corredor uma porta para o sótão, encimada pela foto de uma miudinha sentada num muro/banco a comer e a conversar com o avô que, paciente, assobiava. O avô que, sem desprimor para o resto da humanidade, veste com a maior elegância masculina do mundo - sobretudo nos dias de lenço ao pescoço. Terá refinado a arte durante a venda de fazendas, quando visitava tantos alfaiates. A mala da carrinha tinha sempre malinhas mágicas com pequenas amostras, cortadas em ziguezague e organizadas como um livro de páginas ligeiramente sobrepostas, ou então os longos rolos de peças inteiras, depois de a fazenda já ter sido escolhida. Nesse tempo isento de cadeirinhas e cintos de segurança, o meu lugar era ali no meio da fazenda, ia tocando levemente para perceber qual a mais macia e inventando histórias dali ao armazém dos Lóios, ou dali aos Telefones, ou dali para qualquer canto do mundo.

E, quando voltávamos a casa, depois de tudo o que era preciso estar feito, tempo para ler. Nunca houve uma estante proibida, o que acabou por ser complicado, porque a Manhã Submersa pelos oito ou nove anos (seriam mais?) é indigesta e deixou-me uma pedra na porta do existencialismo.

Mudaram-se as janelas, algumas paredes, algum recheio, manteve-se a porta de madeira com as suas trincas e trancas de bairro - e, nas traseiras, vivem agora os garnisés que o Sr. Paixão deu ao Quim, que por serem do Sr. Paixão não quer matá-los, e que aprenderam a dormir nos ramos de uma árvore para se safarem dos cães.

E, lá em casa, rijos e infinitos, os meus avós.

domingo, novembro 01, 2015

PDL



Quarta-feira. Os meus pulmões rangem de fumo. Voltei a acordar às 4h, com um pesadelo. As grades não me saem da ideia, nem a meio da semana. Deixei uma garrafa à cabeceira, para acelerar o sono em noites destas, mas hoje nem assim consigo.

Ela dorme. Na mesma posição há 12 anos, com o mesmo pijama, já desbotado de tanta água. Dorme como se não se passasse nada, como se a noite fosse tempo livre feito para dormir.

Apetecia-me acordá-la, encostar-me duro a ela até que acordasse, mas ia ficar chateada, discussão e dor de cabeça. Já veio para a cama depois de mim, há umas duas horas, que o miúdo não queria acalmar.

O puto dorme mal. Não percebe porque é que eu saio ao fim-de-semana e vinga-se todas as noites. Custa-me demais e volto a sair, a ver se encho os miolos doutra coisa qualquer que não os berros deles os dois. Volto, eles calam-se, eu acordo.

Estou todo trocado. Ocupo o tempo todo com esta ideia cinzenta de ser criminoso em part-time e zero a tempo inteiro. De dia trabalho. À noite como com eles, discuto com ela, saio, bebo e volto a pé. Sábado de manhã vou para Monsanto e vivo na pocilga até segunda-feira de madrugada.

À segunda e à sexta o clima é diferente. Temos saudades ou temos medo. Berramos mais, mas não nos largamos. Ela faz bife, traz-me bolo, acorda-me com um sorriso meio tremido. Mas as quartas são de sopa e restos aquecidos.

Aquele cheiro, pior que bafo depois da noite mais passada. É tão podre. Não percebo, nem deve ser suposto. Um gajo é preso em part-time para sentir, ao fim-de-semana, que fez asneira da grossa. É preso para sentir a prisão, porque ao fim-de-semana não há cá prisões que nos ensinem a não cair. Psicólogos, assistentes sociais e gente dos cursos não trabalham ao sábado e ao domingo. Ir dentro ao fim-de-semana é garantir que nos enjoamos o suficiente nos dias livres e ficamos a pensar nisso o resto do tempo.

A única cena que me fazia sentir livre era o ar na cara, ao andar de mota. O ar na cara tirava-me as outras ideias, o berreiro, o vómito do dia-a-dia. O mais depressa que pudesse. E em Monsanto era bom, porque passava pouca gente, e se fôssemos depressa depois da chuva o cheiro era brutal.

Bati uma vez numa árvore e eles apanharam-me tudo: sem carta, sem seguro e bebida a mais. Virei-me contra um dos polícias. Ela vendeu-me a mota durante a preventiva. Ao fim-de-semana volto a Monsanto, para perder o ar.

Um cigarro na varanda. Não fumo na cama desde que fui pai, mas apetecia-me. 4h20. Não há noite viva, não há dia, o tempo que tenho livre é uma merda vazia. Carros na via rápida e chuva miúda, nem os melros se ouvem. 

Mas fumo. Enquanto fumo, respiro. O fumo é meu. Dentro. E fora.





A partir da foto de Luís Barra e da notícia de Hugo Franco e Joana Pereira Bastos, "509 portugueses presos em part-time", sobre prisão por dias livres, no Expresso de 31 de Outubro de 2015.

terça-feira, agosto 04, 2015

Enquanto cresces

O pólen voa entre as flores
de pétalas abertas
num rodopio de cores descobertas
como as da manta que te aguarda.
Estás quase aqui, não tarda
serás como os frutos
que nestes meses crescem
e amadurecem sob o sol.
Aguarda-te o nosso colo
onde serás sempre criança.
Por enquanto, a mãe dança
ao som do teu sonho
e o pai veste esperança
sobre o futuro risonho.
Anda lá, cresce,
vem com calma no tempo certo.
Terás os nossos braços por perto
e a vida toda para sonhar. 
Vem forte como a onda,
inspira como a floresta,
sê tudo o que desejares
no que a vida te empresta.

Primavera

É hoje o tempo
de dançarmos como o vento
que abranda sobre o mar.

É hoje o dia
para forrarmos de alegria
a casa a desabrochar.

Des-solidão

No frio de Novembro,
se bem me lembro,
os tempos batiam cinzentos
de habitual dia-a-dia.
Até que o normal virou magia,
o frio virou relento
e, à nossa volta,
uma imensidão de estrelas.
Uma das memórias mais belas
para sempre:
aquela notícia quente,
maior que todos nós.
Nunca mais estaremos sós.

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

Os nostálgicos das 5h30 da tarde

Nesta rua tão lisboeta,
uma escola de um lado
e, do outro, uma velhinha atrás da janela fechada.

As crianças saem, mascaradas.
Toda a menina é princesa
e os meninos são o que lhes apetecer.
A senhora está só e olha-os.
Não sei se os vê.
A sua cara tem muitos vincos marcados,
talvez tantos quantos os filhos
netos
paixões
todos eles longe, e ela sozinha.
Entre a senhora e as crianças,
a estrada de Benfica
e as numerosas pessoas que aguardam
na paragem do autocarro.
E ninguém se vê,
as crianças correm e brincam sozinhas,
os adultos olham o chão sozinhos.

Só a senhora os observa. 

quarta-feira, junho 25, 2014

EcoFemina em bicicleta

As mobilidades eram um dilema. Os representantes das imobilidades, ainda mais. A cidade era a inspiração perfeita para a contestação. Tentando fugir da sombra e erguer o corpo pelos direitos da pessoa na terra que habita, EcoFemina decidiu passar para o lado do sol. Testou a bicicleta. Colocou o suporte de vida em dois alforges de lona tipo militar, comprados na Rua Escura. Apanhou boleia até à Costa Vicentina e daí continuou sobre duas rodas.

Enquanto seguia de carro, rumo ao sul, os pensamentos esbranquiçavam. Na perspectiva mais optimista, meditava. Na perspectiva mais realista, apercebia-se de não saber o que ia fazer, apagava o registo, panicava e voltava a aterrar - enjoada, como sempre, por andar de carro. O automóvel desde muito cedo a enjoara, com todas as curvas, apertos, cheiros e incapacidades de controlar o percurso. A essa data, EcoFemina ainda não conduzia. Para não ser conduzida por outros devia seguir o percurso a pé ou em bicicleta. Esse era o indispensável, sacro passo do empoderamento pessoal: tomar conta de si, decidindo o momento de partir, os passos a dar e o alcance do seu próprio movimento.

ILUSÃO: acreditar/projectar uma ideia não verdadeira. Exemplos: acreditar que, dois anos depois de não fazer qualquer exercício físico por salvaguarda de saúde, uma pessoa pode pegar na bicicleta e seguir caminho, "incólume e segura"; pegar na bicicleta, seguir caminho, com os bafos de fora e o pé torto, perguntar a um autóctone quanto dura aquela subida (o Alentejo não era plano?) e acreditar nos ditos 200 metros; dois quilómetros depois, rejubilar com uma descida, largar os pedais, acelerar por inércia, subir a seguinte com o balanço da anterior e acreditar que a corrente, os travões e as velocidades continuam na maior; parar por se estranhar a solidão - teria sido, pela primeira vez na vida, mais rápida que o restante grupo? - e aí ver que a bicicleta estava estragada e que o grupo tinha parado devido a uma triste lesão. É melhor parar por aqui, que por vezes EcoFemina receia que a volta em bicicleta seja uma ilusão e não uma memória do verão de 2004.

A primeira coisa que EcoFemina enviou de volta para casa foi a tenda. Pesava 1,5kg e, quando o dia se punha, não havia força para montar tenda nenhuma. Na noite após o envio da tenda, naturalmente, choveu a potes. O abrigo possível foi uma escola primária em tempo de férias, que gentilmente abriram para que o grupo pudesse resguardar-se e utilizar uma wc-zinha com portas. Um verdadeiro luxo face às duas semanas de sono ao relento que se seguiram.

O momento do sono era engraçado, devemos admitir. EcoFemina sofria de insónias, mas não tanto nos dias em que estourava o corpo em andanças pouco habituais. Daí ser perfeitamente lógico que, num certo dia, EcoFemina tenha acordado com meio escorpião na barriga e sangue no saco cama, mas não na pessoa - a luta pela sobrevivência em tempos de sonambulismo ao relento! Ou então aquela vez em que chegaram a Lagos bem à noitinha, olharam para o parque infantil e saltaram para aquele chão mole que amparava a queda da infância - e ao raiar do sol, acordar com a magia dos sistemas de rega e dois cães de guarda com o dentinho bem próximo da cara estremunhada de EcoFemina. Mais simpático foi acordar e ver que havia uns dois centímetros entre o pé e o vazio; é que uma pessoa chega à noite, com pouca luz, e deita-se no terreno liso e acimentado junto à bina; e acorda de manhã no fundo de um telhado sem telhas, que afinal era inclinado, descendo desde o passeio. Antes ficar na areia! Passear quando nos dá na real gana e encontrar alemães filosóficos nas grutas da praia... acordar com a lambidela do boxer castanho, amigo de quatro patas de outros dormentes de praia... tomar o banho matinal em água salgada, deixar que o frio húmido nos acorde do verão quente.

Esse foi, efectivamente, o verão quente de EcoFemina, o seu 68/75. Poucas flores, muito suor. Em vez de flores, o verde - as descidas em que, sem esforço, podia desfrutar do cheiro das árvores por que passava, o vento manso no corpo rijo e na vegetação leve. E o azul - o refúgio no mar, sempre que era preciso ter mais força. Foi preciso todos os dias. O grupo era complexo, idealista e andava a tentar definir o "consenso".

CONSENSO: consentimento/aceitação de todas as partes numa tomada de decisão. Exemplos: num espírito de democracia directa, reunir o grupo todo, tipo assembleia, e discutir o que for necessário para seguir caminho; não sendo consensual o número de quilómetros a percorrer por dia, dá-se a seguinte exposição: "Pois eu quero fazer 70km por dia. Se o teu limite biológico são 35km, podemos chegar a consenso pelos 50km" e concluir que o limite biológico é uma abstracção negociável pelo princípio do consenso; em assembleia, considerando a pouca disponibilidade de dinheiro do grupo, decidir consensualmente que cada elemento juntaria os seus 5€ diários para comprar e partilhar comida, e depois ter vontade de ir à wc em horas pouco consensuais e, ao regresso, a comida já ter acabado; consentir que o consenso deva estar na base de entendimento do colectivo sobre rodas, que porém não consegue pedalar suficientemente depressa para fugir do conflito e vrrrrrrum! vai um berro entre as árvores, e vrrrrrum! vai um jacto entre camiões na N125, e vrrrrrrum! ... vai cada um ser consensual consigo mesmo, e o grupo acaba por seguir caminhos diferentes.

Em contexto de tal violência auto-infligida a título voluntário, a coerência acção-ideal também se vê posta à prova. Pois pensemos: Alentejo e Algarve, Agosto, 40 e picos graus, nem toda a gente acorda bem de manhã, seguimos sob o pico do sol... E ao longe um hotel. Os hotéis têm máquinas, EcoFemina tem sede. Vai sozinha, olha para a máquina e morre de amores: Iced Tea!! Dois, três seguidos, sem respirar, antes de se poder pensar que o Iced Tea é um refrigerante, e é da Nestlé, e a Nestlé... etc. E um hotel... uma cama, uma wc, família por perto, conforto, o carro que não magoa o pé, a comida sem se contar as garfadas... Sim, aceitou. Aceitou a refeição no restaurante, os pais vieram do Porto, era o seu 18º aniversário. Sim, aceitou mais tarde ir ter com mais família de coração, não fosse o caso do GPS mental nunca ter funcionado bem e perder-se em bicicleta, estourada, ansiosa, saudosa de um conforto menos exigente, menos livre, menos arranhado.

A viagem acabou com a bicicleta no correio e um gelado na mão. Chegou ao fim, foi uma das últimas quatro pessoas. Já não havia voz para gritar a vitória. As estradas de regresso não podiam ser as mesmas; já não tinham um bando jovem sobre rodas, já não havia EcoFemina em pseudo-bikini a atirar-se aos canais de rega, e a pele estava escura, e tinha pêlos que, quem não quisesse, não visse. Estava cansada, guardando no peito a prova de que não há impossíveis e no pé o peso duro de se realizar o que parece impossível. "Foi menina, veio mulher", leia-se pelo bilhete de identidade. Veio crescida. É que a viagem foi tão... onírica, meiguinha, fofinha, miminha, que só demorou dez anos a sair pelo papel.

E não voltou a andar de bicicleta.

segunda-feira, junho 09, 2014

sexta-feira, março 21, 2014

(re)ciclos primaveris

Há dois anos atrás cheguei a Bolonha para lá morar, pela segunda vez, e desenvolver a primeira parte empírica do doutoramento. Há um ano atrás voltei a Bolonha para a estreia do documentário que tinha sido possível co-realizar durante a experiência de investigação do ano anterior. Este ano arrancámos com um projecto coordenado por Bolonha, com participação portuguesa pelo meu grupo de trabalho, para apoiar o desenvolvimento de plataformas interculturais na Rússia.

Perco estabilidade quando penso que há ciclos para concluir. Prefiro reciclar, recriar vida em cada célula que nos transmita vida. Creio que é isso, a primavera. Mais do que o alento de abrandar o frio, é a promessa do reciclo.

Pela primeira vez em alguns anos, estarei em Sintra, em Lisboa e no Porto durante esta semana. Mudarei de casa. Abdicarei de alguns objectos para que o novo pouso se renove. Tentarei simplificar, ganhando espaço e tempo.

Que as sementes lançadas à terra fértil sejam sinal produtivo para todas e todos.
Bom reciclo primaveril*