sexta-feira, dezembro 19, 2008

estranheza

foto de Akio Takemoto, 2007



já fui





sob o olhar de quem via assim as coisas. nem sei onde pus aquelas calças e saias e coisas largas, sei do colar e não o uso. não sei onde é que me arrumei, mas deve ter sido a primeira vez. como não costumo ser organizada, não sei onde fui parar. por enquanto estou pelo centro-sul no país mais ocidental da europa, diz a bússula. naquele então estava no centro-norte do país bota. e era uma lomo fish eye, e eu levei um pin da embaixada lomográfica do bairro alto. as coisas pareciam todas mais agressivas e vivas. eu escrevia menos e vivia mais. agora vivo menos mas também não escrevo muito. venha estalo no meio da cara.





não sei o que fiz ao que era de mim. se calhar vendi e tapei com boas-figuras. tenho saudades de andar a chorar e a dançar mais no meio da rua, de ter comentários mais desagradáveis que o suportável e de sentir a consciência eminentemente mais tranquila porque mais exposta.

deve ter sido isso, vesti-me. há quem diga que cresci

sábado, novembro 01, 2008

existência pendular

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truque de nunca pertencer. no caminho, destruição desconstruída. pedaços. ervas mortas e coisas verdes e amarelas. não pertencer aqui ou ali, continuar caminho. enxugar a humidade, vestir e despir lã, olhar nos olhos, continuar caminho. não ser isto nem aquilo, ver o cavalo estático em pasto, não tentar acelerar o tempo ou espaço, romper apatias, continuar caminho.

ultrapassar o transcendente. ser pendular. domínios de existência.

tenho o âmago susceptível. já posso escrever.

segunda-feira, outubro 13, 2008

sistema digestivo

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eu já engoli sofregamente o coração, a escada, o mundo, a viagem, a ilha, o eclipse, as rosas com o cavalo e, sobretudo, a Zoe e o Anjo... que delícia, obrigada
disse eu

ainda bem que pude contribuir para uma refeição tão poética
disseste tu

desta vez engoli o livro da dança, mastigo a reza na era da técnica e tento saborear mais devagar a perna esquerda de paris. tinha de o conhecer melhor
disse eu

e com que velocidade o mastigas... eu estou na fase de por vezes fazer dieta dele
disseste tu

certos livros devem ser degustados, outros engolidos, e alguns pouco mastigados e digeridos
disse ele

já a fazer leituras-encontros :)
respondeste

domingo, outubro 12, 2008

urgência

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Amigo, perdi o caminho. Eco: O caminho prossegue.
Há outro caminho? Eco: O caminho é só um.
Tenho de reconstituir o trilho. Eco: Está perdido e desapareceu.
Para trás, tenho de caminhar para trás! Eco: Nenhum vai lá ter, nenhum.
Então farei daqui o meu lugar, Eco: (A estrada continua),
Permanecerei imóvel e fixarei o meu rosto, Eco: (A estrada avança),
Ficarei aqui, ficarei para sempre. Eco: Nenhum se fica por aqui, nenhum.
Não consigo encontrar o caminho. Eco: O caminho prossegue.
Oh, os lugares por que passei! Eco: Essa viagem acabou.
E o que virá por fim? Eco: A estrada prossegue.



Edwin Muir (1887-1959, Reino Unido)

trad. Cecília Rego Pinheiro, in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

segunda-feira, setembro 22, 2008

cedo (do verbo ceder)

que grande... para mais, ver o cd "Canção ao lado" de Deolinda.

se for assim, que haja fado

(faltam nesta montagem algumas das músicas mais bonitas. é procurar...)

sexta-feira, setembro 12, 2008

sexta-feira, setembro 05, 2008

palavras de agosto, palavra de verão

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tempos parados em estações. tempos que se movem sem destino preciso, invenção de palavras. tempos de morte aventureira para se renascer. tempos de vida. tempos de necessidade. natureza de tempos amáveis e agrestes. conchas repletas de tempos, sons e espaços. tempos e melodia e de melancolia.
tempos e tempos e tempos.

partida e chegadas. nunca somos um só, por mais que sejam as palavras atrofiadas ou ditas. cruzamentos incansáveis de surpresa, beleza e beatitude de paisagens que nos ignoram e superam. que bela ignorança beata. que beatitude mais despercebida. carris incólumes, quentes, portadores. belos viajantes, infindos sonhos, vontade de partir e de ficar. medo de atravessar o que se enfrenta. medo de partir e de perder. confiança no invisível que é mais objecto que o próprio corpo. dança e acrobatas de aromas e outros sentidos. dança, que o corpo não pode parar. colares ternurentos, memória e percurso. andar em frente, não às arrecuas. encher a vida - ela é nossa. vivê-la soberanamente em cada rua por decalcar. viver sem mágoa, inventar coragem e criar caminho. avançar, deslumbrar, (re)partir, enfrentar, caminhar, caminhar, caminhar.

sigo as sombras e os reflexos, depois espero. no tempo de espera, invento-me. dou sentido à ocorrência. brotam termos que vão definindo cada acção, e o outro vê-me e reflecte. reflectindo, sigo em frente e volto a parar. procuro a direcção do meu andar. paragem necessária para a invenção do novo tempo. tempo de espera, tempo de invenção, tempo de mim mesma. sou o tempo que percorro.

segunda-feira, agosto 25, 2008

timbre

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não, acho que estás te fazendo de tonta
te dei meus olhos p'ra tomares conta
agora conta como hei-de partir


(dizem Chico Buarque, Tom Jobim e Telma Costa em "Eu te amo")

quinta-feira, julho 10, 2008

morre uma borbulha e nasce outra do outro lado

às vezes. ou faz de conta.


momento solitário de necessidade de mimo. alguma coisa morre, ou o eterno sobrepõe o objecto?



até amanhã*

terça-feira, julho 01, 2008

avós

foi escrito para vós. a pensar na vossa casa, com a minha rude tendência de juntar palavras. com tanto que sinto.



I.
O que enche o inverno frio são, sem dúvida, os teus olhos.

É frio de casas incólumes,
de ventos que partem paredes
e afastam palavras.

Sombrio como a noite que se põe sem lua,
descrente nos restantes astros
e de fracassos somados ao abandono das ruas.

Mas com os teus olhos
crias o mundo em que me apaixono.

Nas tuas pupilas descanso,
meu colo meigo,
e na íris desperta
acordo cada sentido meu.

Fitas o mundo e brilhas,
no reflexo dos meus olhos,
para toda a pureza de um novo dia.

E eu, de mãos vazias,
espero o reflexo do teu olhar
no meu
para poder tocar a vida que,
sem ti,
não existiria.


II.
Inventam-se, a cada dia, as pessoas que se amam.

Ainda que o sol não seja o mesmo
nem o mar
nem as andorinhas
que, uma vez por ano, procuram aquela janela.

Ainda que tudo mude
o amor não pode ser mudo
e reinventa quem se ama
em cada palavra pensada.

E, quando a palavra não surge,
inventa ainda o silêncio
(um silêncio mais doce
que uma palavra em vão,
o silêncio do gesto
e do abraço descoberto).

Sai-se do aperto,
da solidão,
e a pessoa mais a pessoa
inventam uma nova escala.

É assim que,
quando o amor fala,
se descobre a imensidão.

sexta-feira, junho 27, 2008

aos meninos grandes

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Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.


(disse Eugénio de Andrade em Não quero, não)


um beijo enorme a estes grandes *

segunda-feira, junho 09, 2008

poesia do prosaico

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I.

É íntimo, o mundo em que te sento. Tão íntimo quanto o meu corpo nu. Vestes-me algumas linhas e empurras para ela o meu pescoço. Como se o cabelo não existisse. E ela, molenga, aceita-me e recua. Estancam os meus olhos nos acumuladores de palavras. Palavras limpas e palavras sujas, presumo. Todas juntas, ignorando o meu sono.

Sento a toalha na cama, ela veste um mínimo de subtileza e conduz-me à almofada. Frente à cama, arquivos. Palavra de sono.


II.

Esbranquiçada e torta por todo. Quase-rebola e vê o mundo quase-morto. Só precisa de água e luz e de perder o esquecimento. Criar memória e colá-la às coisas. Para haver coisas com memória e menos mortas. Depois, quando rebola torta, descobre a vida.

Estanque, a bola de trapos. Ignora a cola que aponta a planta amurchada. Falta-lhe água. Falta-nos perder o esquecimento. Nunca me lembro.


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sexta-feira, abril 25, 2008

ainda espero, que o tempo faz-se lento

mas adoro a voz desta senhora



Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo



Sophia Mello Breyner Andresen

sábado, abril 12, 2008

la mort pour les rêves

Nous aurons des lits pleins d'odeurs légères,
Des divans profonds comme des tombeaux,
Et d'étranges fleurs sur des étagères,
Ecloses pour nous sous des cieux plus beaux.

Usant à l'envi leurs chaleurs dernières,
Nos deux coeurs seront deux vastes flambeaux,
Qui réfléchiront leurs doubles lumières
Dans nos deux esprits, ces miroirs jumeaux.

Un soir fait de rose et de bleu mystique,
Nous échangerons un éclair unique,
Comme un long sanglot, tout chargé d'adieux ;

Et plus tard un Ange, entr'ouvrant les portes,
Viendra ranimer, fidèle et joyeux,
Les miroirs ternis et les flammes mortes.

La Mort des Amants, in Les Fleurs du Mal,
Charles Baudelaire
odio-distruzzione a Marzabotto: la mort profonde
(foto di Luglio 2007)

aspetto il sogno, credo che possa esistere... alla fin fine. a volte si deve sparire per poi rinascere.

abbiamo diritto a non essere morti, diceva I. (5 anni). aveva ragione. voglio imparare dacappo come si vive e come si sogna *

quarta-feira, abril 02, 2008

dia deles

eles são os livros para a infância e um dos senhores que mais nisso pensou, que faria hoje 203 anos_loro sono i libbri per l'infanzia e uno dei signori che ne ha più pensato, il cui farebbe oggi 203 anni



Podes mostrar o livro a quem quiseres, isto é, a pessoas com olhos doces e que sejam amigáveis, mas se vem um cavalo do inferno... Então fecha o livro ilustrado do padrinho.



O livro ilustrado do padrinho (1868) Hans Christian Andersen

sexta-feira, março 21, 2008

metáfora de equinócio

primavera tem olhos semicerrados e procura nas nuvens um rasgo de sol. pede dias maiores e vive de flores assim, num céu amarelo.




p aredes rasgadas
a brem caminho ao sol.
p oentes ou nórdicas ventanias
o uvem cada semente
i nsensata
l avrando melancolias novas,
a rrancadas ao negrume da mata.

d oem-se nascentes
a mores...

p ousam,
r amo após raiz,
i nsectos e aves triunfantes.
m oem a tristeza,
a nunciam a natureza petiz
v era crua manifestante.
e ra uma vez,
r aptada Perséfone ou estação se escolha,
a primavera da papoila.

sábado, fevereiro 16, 2008

solidão, diz armindo rodrigues

assim:

Na devoradora agonia
desta aventura de estar só,
nuvem que passas,
inutilmente procuro
o convívio da tua sombra.
Calam-se até na memória
o vento e as fontes.
As estradas não conduzem
de parte nenhuma para nenhuma parte.
Parou o sol.
Esvaziou-se o espaço.
Só tu,
subterraneamente,
em mim esvoaças, esperança,
minha ave de entranhas.



giorno di memoria vietata. anche di impassibile presente. maledetta speranza, mi uccide e non mi fa far nula.

vou embora, que amanhã este não será o meu chão. desaparece, por tacos novos. só tenho fotografias e letras, mas juntaram-se de tal maneira que não me passa a tosse.

parece que engoli o pó todo que cá tenho arquivado.

domingo, fevereiro 03, 2008

someone might wait

rua dos bragas, porto, 2005/06
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(as Tom Waits once sang)
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take me home you silly girl
put your arms around me
take me home you silly girl
all the world is not round without you
i'm so sorry that i broke your heart
please don't leave my side
take me home you silly girl
'cause i'm still in love with you
.
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(sem-casa, procura-tecto, lugar-nenhum. quero sair da distopia)

sábado, fevereiro 02, 2008

terça-feira, janeiro 29, 2008

quarta-feira, janeiro 23, 2008

ternurenhice

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pausa (de semínima)
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e antes de despedir, um momento de ternura para concretizar um dos princípios proposto no grupo de crianças: nunca se recusa um abraço.

vem logo Sérgio Godinho à cabeça


são dois braços
são dois braços
servem p'ra dar um abraço

assim como quatro braços
servem p'ra dar dois abraços

e assim por aí fora
até que quando for a hora
vão ser tantos os abraços
que não vão chegar os braços
para os abraços

terça-feira, janeiro 15, 2008

a duas senhoras

porque...



uma nasceu no meu dia de anos, ainda que quase 100 anos antes, e escreveu

Nenhum olhar, fosse de um ser humano, de uma fera enjaulada ou de um animal de estimação, havia contemplado Mrs. Lanier quando ela não estava melancólica. Ela dedicava-se à melancolia, como os artistas menores às palavras e à tinta e ao mármore.

(no Coração de Manteiga, um dos seus contos)









a outra faleceu no ano em que nasci, e se tal não tivesse acontecido, teria completado no outro dia 100 anos. para além disso, disse

Que nada nos limite. Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.
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(penso que o disse no Segundo Sexo)

quinta-feira, janeiro 03, 2008

começo o ano com um adeus

*

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti



Um adeus português,
Alexandre O'Neill
*