domingo, fevereiro 17, 2013

Falta primavera

nos olhos nublados e frios,
na tempestade indomável como a alma
e na alma das coisas que a não têm.

Faltam estações além das de comboio,
estruturas circulares onde uma pessoa vai e volta
como aqueles suspiros que podem repetir-se na manhã seguinte.

Há demasiadas máscaras para tão maus actores.
Muitos actos para um guião subdesenvolvido.

Escasseia o sol na pele morena empalidecida, 
tanto que por mais que a água nos espelhe
pouco ou nada reflecte em brilho.
Tornámo-nos pálidos e baços, 
trupe anémica engolida em lã.

Bendita primavera das doces flores,
aproxima-te e leva o turbilhão de vento
que ele levará o grito adoentado
que por sua vez surgiu da revolta inactiva.

As pessoas estão cansadas, primavera.
Ombros nus desejam abraçar-te.

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Sobre a mulher-propriedade

"Quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impôr à outra a sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre em tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se, pois, que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu realizar essa vontade?" (Beauvoir, 2008: 99)

Beauvoir conta-nos que, do período agrícola até à actualidade do seu ensaio, é possível interpretar um conjunto de visões sobre a mulher. Nessa evolução há um carácter relativamente estável: a mulher-propriedade sob domínio do homem.

1. A mulher que desempenhava o trabalho campestre permanente, já que ao homem cabia o trabalho ocasional de defesa, caça e pesca.
2. A mulher que se reproduzia, desempenhando um papel protector e nutritivo, podendo tornar-se autónoma mas não se bastando dessa estagnação natural enquanto espécie; a mulher dá a vida, mas o homem é-lhe superior já que é ele que arrisca a vida na guerra.
3. A mulher na visão da posteridade: o seu papel biológico vê-se subjugado ao valor da propriedade (privada) em transmissão entre gerações; a mulher que procria para criar herdeiros.
4. A mulher serva de senhores, simultaneamente reprodutora e cumpridora das tarefas domésticas, que é subordinada pela exaustão e, mais tarde, pelas instituições.
5. A mulher do mistério produtivo (na concepção e nas colheitas) e o homem que passa a superá-la no domínio da técnica, no aparente controlo sobre a natureza.

"Assim, o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem o resultado de uma revolução violenta. (...) Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe o seu destino" (Beauvoir, 2008: 118). O pacifismo (com momentos e situações pontuais de excepção) da mulher-propriedade enquanto dominada (propriedade de outrem) e da mulher que se dedica à propriedade terrena constante (trabalho doméstico, no campo, na criação dos filhos).

Venha um salto no tempo, mas recomendo que leiam a retrospectiva histórica e filosófica de Beauvoir. Passo aos dias que acompanharam o meu crescimento. Os dias em que os nascidos quando "O Segundo Sexo" foi escrito já eram adultos e, por vezes, pais. Já evidenciavam a alteração de estatuto da mulher, a emancipada que pode viver autónoma (ainda que com rendimentos inferiores aos do homem), divorciar-se, votar, cometer um crime e ser julgada como pessoa (reduzindo a imputação de género na justiça). Tudo isso foi escrito e por mim lido. O resto partiu da observação do jogo escondido, das legitimidades em acção que permeavam as relações de quem fui conhecendo.

Crescemos sob matriz judaico-cristã, tantas vezes não apenas ao nível de valores como também sob a mão prática da religião institucionalizada. A obediência era conveniente e um dos meios rápidos de a conseguir era face ao medo patriarcal da autoridade: medo do pai, medo do polícia, medo do director e até, imagine-se, medo do papão (significado do escuro, do que não vemos; já as bruxas podiam ser vistas e causavam bem menos receio). A consequência da não obediência tornava-se, assim, previsível: punição por mão grande, por voz grande, por aqui que não vislumbramos e, por isso, não podemos enfrentar.

Garantir o desequilíbrio e a falta de reciprocidade através do privilégio da parte dominante - tática imediata e eficaz. O que nunca entendi foi que tantos pensassem ser directa a relação entre medo, obediência e respeito ou educação. Pois se uma criança, crescendo em homem e mulher, aprende a ser propriedade do medo e seus detentores, como poderá emancipar-se sem fugir ao pacifismo da sua dominação? Legitimando a sua vida adulta como novo papão? Criando um matriarcado violento como o exemplo patriarcal em que cresceu ou que foi observando em quem rodeava? Simulando a violência emancipatória e continuando a legitimar, nas escondidas de quatro paredes, ser propriedade de outrem?

Não creio que a dominação homem-mulher esteja muito afastada do que se legitimou, ao longo dos anos em que cresci, sobre a suposta superioridade de adultos sobre crianças, de padres sobre praticantes e outros religiosos, de patrões sobre empregados, de professores sobre alunos, entre outras dialéticas em que a autoridade pode passar a autoritarismo num piscar de olhos e a legitimidade continua a abraçar a vida dos primeiros. Creio, por outro lado, que se a parte humana se sobrepuser à parte proprietária - a pessoa que é e cresce, acredita, trabalha e/ou estuda, vive - ganhamos nova hipótese de reciprocidade na luta partilhada do desenvolvimento. 

Aquela que se recusa a ser propriedade de outrem e até, imagine-se, que luta para não ser propriedade das suas propriedades terrenas - materiais (casa) ou de vontade do seu espírito activo (papéis que se atribui no trabalho ou activismo, por exemplo), não passa de mulher a fêmea; cresce e abandona o seu lado mais objecto no sentido do de sujeito, de algo que supera o seu imediato ou futuro previsto. Existir supera essas propriedades. Existir como mulher requer mais luta que a média.

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Sobre a mulher agradável que tem (vergonha de) um corpo

Sento-me ao sol no pátio caótico que demorarei a arrumar. Apoio o caderno n'«O Segundo Sexo [I]» de Simone de Beauvoir, ao qual regresso uns bons anos depois de o ter encontrado. Falta uma semana para dia 14 de Fevereiro, dia V - não só de S. Valentim, será também dia de reivindicação mundial pelos direitos das meninas e mulheres. Sugerindo uma semana de reflexão sobre estes V-direitos, começo por pensar no direito ao corpo.

Creio ser universal a visão de que o corpo é um direito - da atribuição divina de um corpo para existência terrena até à consideração do corpo enquanto locus de marca no correr do tempo; o corpo que materializa a vida, o corpo que caminha, o corpo em que o caminho se tatua, o corpo que morre por natureza ou desígnio. A questão não será se o corpo é um direito; é mais: o corpo é um direito de quem?

A resposta verbal pode ser mais imediata que a resposta vivida. Não tenho qualquer dúvida em trazer para as letras: o direito sobre o corpo é detido pelo próprio, pela pessoa-corpo-espírito-mente que o vive. A dúvida surge na retrospectiva: será que sempre confiei nesse meu direito e nunca o desrespeitei, emprestando-o à voz e acção dos outros? Não, nem sempre assumi esse direito.

Não creio que se trate somente de um problema feminino, mas sim de uma questão generalizável a diferentes grupos potencialmente mais vulneráveis. Quando se coloca o problema do direito sobre o corpo, o meu primeiro pensamento recai sobre as crianças. Que direitos lhes atribuem as estruturas colectivas no que toca à sua salvaguarda corporal? No caso português, estatutariamente, muitos direitos lhes são atribuídos e reconhecidos. Pude observá-lo na legislação sobre serviços sociais para a infância e seu atendimento educativo, há uns anos atrás. Mas do espectro legal à realidade praticada há sempre espaço de viagem, e a viagem pode tornar-se particularmente tortuosa nos espaços mais escondidos: a criança dentro da sala, a criança dentro de casa, a criança onde pode não ser vista. E aí não haverá lei que nos salve; para esses lugares escondidos, acredito que a única salvação é rever o que é ou deixa de ser legítimo na nossa acção.

A violência ainda é legítima. A repreensão física sobre quem não tem estrutura possível para responder, ainda que actualmente tenha menor aceitação, continua a ter muita. A formação do respeito ainda se confunde muito com a criação do medo, seja por meio físico ou verbal. A educação é imprescindível e ainda não se domina a sua versão respeitosa, assertiva e não violenta. A família e a escola são geralmente os guardiões do direito sobre o corpo das crianças e muitas vezes não sabem salvaguardar esse direito, desprezando até a voz da própria criança. O seu corpo, através do qual aprende ao explorar o mundo, torna-se no primeiro saco através do qual duvida sobre a dignidade da sua pessoa.

O corpo vergonhoso surge muito cedo. Rapidamente as crianças se apercebem que dizer magro, gordo, caixa de óculos, perna longa, perna curta, marcado, descabelado, juba de leão, olhos tortos, dentes esquisos [e por aí fora] tem um impacto nos outros. A partir daí agem e reagem, são mais ou menos legitimadas e reforçadas pelos adultos que as rodeiam, resolvem ou deixam por resolver uma série de questões. Mas, enquanto crianças, ficam tendencialmente na versão parcial da resolução - ao não deterem e dominarem o direito sobre o seu corpo, estes dilemas (sobretudo se surgirem num contexto de pouca confiança própria) perpetuam-se na atribuição da resolução ao outro. Uma pessoa será bonita, inteligente e agradável se o outro a reconhecer como tal.

O "agradável" foi posto de propósito para abordar a questão feminina. As mulheres não são crianças grandes, mas a imputação do "papel agradável" faz com que muitas vezes se assemelhem na infantilidade emotiva ligeirinha que se lhes legitima. Dizia Beauvoir sobre Stendhal: "Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama na sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a ideia de um «eterno feminino» parece-lhe pedante e ridícula. «Pedantes repetem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo, e os homens mais solidez; que as mulheres têm mais delicadeza nas ideias, e os homens maior capacidade de atenção. Um basbaque de Paris que passeava outrora pelos jardins de Versalhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas.»" (p. 337). A mulher agradavelmente podada é a que responde aos mitos do feminino: é a carne da natureza, simultaneamente húmus e beleza sensível, detentora das chaves da poesia, mediadora entre o natural e o sobrenatural, votada à imanência passiva da distribuição de paz e harmonia, o outro que serve à realização do homem (palavra de Beauvoir). Além destas versões da mulher, há a fêmea.

Queria falar sobre o corpo. Creio que o corpo reflecte as mesmas categorias da mulher agradável. O corpo agradável vai tendo standards diferenciados, já foi mais arredondado, agora é emagrecido, relativamente alto e sob a moda do étnico - não importa só a barbie 34 loira branquinha, também pode ser africana ou asiática e de tonalidades variáveis. Mas, seja como for, terá de ser consciente sobre a sua carne: revelando-a ou escondendo-a na noção de que isso pode provocar acções de realização por parte do homem. Domando o corpo para que diga "sensível" ou até "transcendente". Passar de fêmea a feminina.

A vergonha começava por ligar-se à não conformidade com o standard 34 simétrico, com a bacia que não encaixava na forma pretendida para as ancas, com a dificuldade de concretização física de algumas actividades e a exposição que daí derivava. Somavam-se cicatrizes tatuadoras de muitos momentos e actividades hormonais desconcertantes. Falo da minha vergonha. Do facto de só ter conseguido comprar uma saia curta em 2007, três anos depois de começar este blog, e de ainda hoje só a conseguir usar com meias opacas, "para que não se veja". Falo da dificuldade em sair à rua com um decote, "porque é tentador" - e quando alguém manifesta a tentação fico tão desorientada que o corpo entra em colapso, viro costas, volto a casa, troco de roupa e saio de olhos no chão. Nestes momentos, não respeito o direito ao meu corpo. Contribuo para a paz violenta, aquela em que os olhos alheios nos controlam e depois fica tudo calminho. Contribuo para a poesia do silêncio improdutivo, aquela poesia que na realidade se basta em rimas cruzadas e sempre consoantes.

Vivo num país que faz parte dos 199 países que dia 14 se levantam para dizer "viva a mulher" e não "vergonha de mulher". Sugiro que todos/as o celebrem e se coloquem alguns "e se?". Por exemplo: e se não caísse na tentação de dizer à pessoa aqui ao lado "assim estás bem, fica-te bem"? É que isso pode querer dizer que antes estava mal - da mesma maneira que dizer "hoje estás particularmente elegante" não nos deixa pensar que alguma vez não estivemos bonitos/as - isso é-se, não se está. E se repetíssemos que o corpo faz parte de um conjunto mais vasto e autónomo, não sendo um vegetal que aguarda acção externa? Talvez a diferença mentalizada entre homem e mulher se tornasse não tão mais que um conjunto de diferenças corporais - sobre isso, como sobre a personalidade e o espírito activo, somos livres. Quando a soberania individual sobre o corpo for real, o abuso sexual será uma miragem longínqua. A legitimidade é uma coisa construída e temporalmente relevante; sugiro que se deslegitime a violência e que se legitime a soberania sobre o corpo. Já perdemos tempo demais.



Simone de Beauvoir (2008) O Segundo Sexo, Lisboa: Quetzal (ed. original 1949)