segunda-feira, maio 14, 2012

Aprender o inferno na ponta da língua

Nem todos nascemos de sangue cómico. O que não quer dizer que não sejamos atraídos pela comédia quotidiana ou esporádica, só que não sai bem pelas palavras. Penso em especial naquela comédia mais lasciva. Há pessoas particularmente dotadas para o efeito, nas quais palavras infernais soam a pão com doce e pimenta, a chocolate com piri-piri. Houve quem tivesse tentado ensinar-me.

É um bocadinho desgustoso ser do Porto e não conseguir pronunciar correctamente "Ide, ide com a Nossa Senhora do Espanto meus filhos, ide com o caralho!", frase que tanto nos faz rir nos almoços de Domingo. Ou então quando falo com um caro amigo do coração, pergunto se ainda gosta de mim e tenho direito a cinco minutinhos sem quebra de bom palavreado, finalizado por "gosto mais de ti do que de quase todas as pessoas no mundo, porra!" e nunca saber responder à letra.

Pimenta na ponta da língua, uma das lições correntes na minha geração. Creio só ter experimentado uma vez, na escola, após uma saída mais bombástica. Em casa ensinaram-me a não ser pobre de espírito através da língua, mas confesso que sinto uma riqueza enorme em quem sabe verdadeiramente falar mal!

Há uma casa desabitada à qual sorrio de cada vez que faço a viagem entre Lisboa e Porto de comboio. É uma casa de muita memória e de saudade. Aí tive a minha primeira professora de língua do inferno.

- Pronto, os teus pais já foram embora. Agora diz-me todas as asneiras que já aprendeste.
Eu ficava terrivelmente envergonhada e não conseguia falar.

- Se não mas disseres não faço bolo de ananás.
Este era um ponto particularmente sensível. Aquele bolo de ananás e caramelo era divinal. Era um pedaço de céu no inferno que me pedia. Um deveria compensar o outro.

- E se disser, fazes bolo de ananás, batatas fritas e ovo estrelado?
- Diz primeiro, para ver se mereces!

E eu dizia, começava baixinho e ia subindo de tom em consonância com as suas gargalhadas largas, que ocupavam toda a casa e chamavam os animais. Era uma delícia: cães, gatos, asneiras, risos, bolos e fritos, entre outros mimos. O paraíso de uma criança bem regradinha.

- Olha que tu não tens vida para isso, filha. Estudas muito, vais à missa, vais à música e não aparvalhas. Uma pessoa tem de dizer e fazer umas caralhadas para continuar saudável - dir-me-ia alguns anos depois. E punha o rádio a tocar bem alto, ria-se do berro imediato de um vizinho e servia-me outra fatia de bolo de ananás.

Não fui a tempo de lhe contar uma ou outra aprendizagem do inferno. Infernizei particularmente no ano em que morreu. Acredito que ficaria orgulhosa se me visse em palco vestida de sevilhana, a arregaçar a saia e simular que urinava, a lutar com um gancho de cabelo, a fumar sem escrúpulos e a dizer que, naquela situação, uma mulher "agarra o touro pelos cornos, puxa pelos ovários e manda tudo para o caralho!" (1)



(1) Antonio Onetti (2003) A Rua do Inferno, Livrinhos de Teatro.

4 comentários:

Anônimo disse...

a tua tia deve estar a dar um festival de gargalhadas ainda agora e ao mesmo tempo orgulhosa da sua menina.

a minha menina aprendeu a rir das tagarelices mais brejeiras.

linda a minha menina.

mãe

Anônimo disse...

:)))

A mesma tia q me dava rebuçados para eu dizer "pata, péta, pita, pota e puta" LOLOLLLLLLLLLLL Q para sempre será nossa, esteja onde estiver :))) Lindaaaaaaaa homenagem kiduxa prima :))

Xanoca

Anônimo disse...

E não é que às vezes me lembro daquela saudosa senhora que dizia; sempre, sempre não, mas todos os dias é bom...
Cotas.
Bjs.

Sara disse...

Que bom ler estes textos!
Obrigada por eles, Inês, e um beijinho do norte :)