sábado, maio 12, 2012

Histórias pequeninas em Pilastro

Havia um pedacinho de rio nos seus olhos. De um rio turvo, muitas vezes agitado, mais forte que o seu corpinho de quatro anos. Todos os seus companheiros de sala tinham aquela idade, mas mais nenhum vivia com tamanho rio tortuoso dentro dos olhos. Filippo era capaz de fazer todos os exercícios possíveis e imaginários, respondia com astúcia às educadoras e ensinava aos colegas aquilo que pudessem ainda não ter aprendido. Depois fechava-se com o seu rio por tempos variáveis, ora uns minutos ora a manhã inteira, e todo ele era agressivo e tortuoso.

Um dia abordou-me, com uma folha e canetas para colorir, pedindo para se sentar à minha beira. Enquanto desenhava ia-me observando (já me observava há cerca de um mês). Verde e castanho, um pouco de azul escuro.
- Posso contar-te uma história?
- Sou toda ouvidos.
- Este é o meu pai, na pesca. Eu e o meu irmão gostávamos muito de ir à pesca com ele. Há dois meses que não o fazemos. O meu pai suicidou-se há dois meses, e faz-me falta. Por isso é que desenho as coisas que gostava de fazer com ele.

Continua compenetrado na sua tarefa, em silêncio. Pouco depois, ao ver que Dhael não consegue escolher as canetas para o seu desenho, levanta-se e vai ajudá-la.
- O que queres desenhar?
- O meu sonho! - responde a ciganita de olhos negros, cabelos negros entrançados, corpo esguio e desenvolto, sempre preparada para uma corrida. Era raro encontrá-la sentada, ainda para mais com a intenção de desenhar. Quando me encontrou uma vez, na rua, fez questão de me apresentar a todas as senhoras da sua família, que saíram uma após outra das roulottes, curiosas, para conhecerem a estagiária da "escolinha" de Pilastro. Sempre que me perdia naquele bairro, alguma delas acabaria por me encontrar e reconduzir ao sítio certo.

- Qual é o teu sonho, Dhael?
- Fazer uma viagem. Estou a pintar aqui a minha mala. Vai ter muitas coisas! - dizia, com os braços estendidos e os olhos brilhantes.
- E viajas para onde?
- Para o Kosovo.
E aí tinha o mundo todo a brilhar nos olhos, tinha a família que não viera parar a Pilastro, para a qual queria levar uma mala com muitas coisas, sobretudo esparguete.

- Esparguete com um fio de azeite e alho, é o meu prato preferido - responde-lhe Filippo. Os seus olhos de rio continuam a vaguear pela sala. Alguém faz barulho, alguém grita, e Filippo corre ao seu encontro. É Louise, a pequenina loira de olhos azuis, que não quer sair do colo do pai. Agarra-o com força e grita ao ver as educadoras. Filippo aparece de novo ao meu lado, em silêncio, pega na minha mão e conduz-me a Louise. Não precisou de explicar, já o tinha feito com ele: o truque do abraço. Um grandinho põe-se de cócoras à altura de um pequenino, relaxa os braços e respira devagar, criando um abraço calmo. Era o único modo para acalmar o rio turvo dentro de Filippo, e terá pensado que resultaria com Louise. Aceitei o seu convite silencioso.

- Louise, olha quem veio hoje! - disse o pequenito. Ela largou o pai e veio abraçar-me, com muita força, permanecendo ao colo por muito tempo.
- Inês, já disse ao meu pai que hoje à noite temos de ir ao baile! Quero um vestido azul como os meus olhos, com uma saia a rodar muito, e tu também vais bonita!

O pai pouco me conhecia e olhava o chão, algo embaraçado com a fantasia perene de Louise, a menina doce que raramente aterrava na mesma terra da maioria dos colegas. Era das poucas que brincava com Dhael, e só largou o meu colo para aceitar o seu convite e irem brincar para o jardim. Do jardim, Louise gritava:
- Inês, de que cor é o teu vestido para irmos ao baile, hoje? - e acrescentava um sorriso infinito, enquanto descia pelo escorrega.

Só Filippo permanecera na sala. O seu desenho nunca estava perfeito, nunca o dava por terminado. O rio não cabia ali.

2 comentários:

Anônimo disse...

quando for grande vou saber escrever assim.

obrigada

gostei...muito

mãe

Anônimo disse...

Um brinde à minha sobrinha.
Que nunca lhe falte a boa memória e a boa escrita!
Com um beijo da Zia Né