domingo, maio 13, 2012

Não falemos mal dos gatos

Muito se ouve falar dos gatos, do seu espírito independente, do seu temperamento variável, da humanidade que neles projectamos. O facto de escaparem terna e irritantemente do nosso controlo torna-os dignos de uma infinitude de histórias.

No meu baú há muitas histórias ouvidas tendo os gatos como protagonistas. Gatos que ocupam casas, gatos que criticam falhas musicais, gatos que se entregam à morte distantes dos donos, até aqueles que optam pela morte com a morte dos donos. Gatos que pedem para abrir torneiras e assim bebem água fresca, gatos que vagueiam entre sacos, livros e malas de carros, gatos-amuleto, gatos vadios que trazem amigos para o quintal. Há uma infinidade de histórias possíveis, mas a que conto agora é uma das mais antigas que conheço.

Recuemos, no Porto, à década de 1940. A zona do Largo de Mompilher, nessa altura, seria possivelmente tão escurecida como hoje, mas também sem grandes dúvidas muito mais habitada. Em 2008 ainda havia, só na freguesia de Cedofeita, cerca de 180 ilhas activas; não sei se podemos imaginar quantas seriam, sete décadas antes. Uma ilha, para quem possa não estar familiarizado com o termo, é uma espécie de (parafraseando a avó) "condomínio fechado". Um portão (ou mesmo uma entrada aberta) daria acesso a um tipo de corredor, com uma sucessão de portas (cada uma com direito a uma média de duas divisões, incluindo cozinha) e, no final da sua extensão, uma casa de banho partilhada pelos "condóminos". Devemos acrescentar que atrás de cada porta habitava uma família, regra geral composta por uma mãe, um pai e vários filhos.

Numa das muitas ilhas próximas ao Largo de Mompilher vivia a família de onde provém esta história. Primavam, entre outros atributos, pela capacidade de multiplicação: numa cama individual caberiam facilmente três filhas mais ou menos coetâneas, numa outra o catraio mais fugidio e o pequenote ficava próximo dos pais. 

Alguns princípios de manutenção desta situação de vida foram passando entre gerações. Destaque-se o brio, particularmente na cozinha-sala, mas também a capacidade de inventar soluções com o pouco que se tivesse à mão. Uma mão de farinha, um baldinho de água, um pedaço de bacalhau e alguma salsa fariam um banquete de pataniscas. O óleo em que eram fritas saciava mais rapidamente, atributo necessário nos dias que corriam. As crianças trabalhavam, bem como os pais, o que não significava necessariamente a quantidade de escudos suficiente para pôr comida na mesa.

Num dia de desespero, a gata apareceu. Deambulava pelo seu longo espaço condominial, parava onde a recebessem amavelmente (e que gato recusaria um pratinho de espinhas?), naquele dia parou ali. Parou no dia errado para o mimo humano. Reconchegou-se no colo da mãe, que chorava. Caíam lágrimas após suspiros, angústias após lágrimas e nada a consolava. Acariciava o pêlo da gata, evitaria a todo o custo fazer-lhe mal. Não seria a primeira a fazer passar gato por lebre, mas não era capaz. Nem os seus filhos mereciam ficar sem comer. Continuava a chorar e a gata saiu.

Voltou pouco tempo mais tarde. Na boca, ferrada e suspensa como se fosse seu filho, trazia uma pescada intacta e fresca, que roubara à peixeira. Deixou-a no balcão da cozinha e saiu.

Não falemos mal dos gatos, por favor.

Um comentário:

Anônimo disse...

obrigada em nome de quem, no essencial, contou e viveu a história.

bj

mãe