quarta-feira, junho 06, 2012

Someday (ou as noites em que se salva a vida)

Dezembro de 2002. Os dias andavam ásperos de preocupação. Desenhava o medo no Hospital de S. João e a incapacidade de tirar a dor na Ordem de S. Francisco. Ria-me estupidamente do sofrimento de quem não sofria o mesmo, o que acabou por assustar os colegas, amigos e professores que só nas vésperas perceberam. Havia um coração que não cabia em si e tinha de ser reparado. Um coração que me era muito próximo, e eu tremia muito. Todos tentaram preparar-me para aceitar não saber o que aconteceria; médicos, professores e família explicaram o ponto da incerteza. Operar era um risco grande, não operar seria um fim antecipado. Nessa noite, pela primeira vez, a minha mãe pediu-me para não ficar em casa.

Tinha-lhe ligado pouco antes, a minha Cenoura - tinha cabelos vermelhos e dava muita energia - pôs-se à estrada e veio ter comigo ao Porto. Infiltrámo-nos na casa da nossa eterna Animadora, que morava numa república da R. Miguel Bombarda, em frente a um café fogoso. Nessa noite elas salvaram-me a vida (obrigada*), e o coração pelo qual tremia também foi salvo.

Nunca sei ao certo a ordem dos factores e alguns episódios já tiveram de me ser recordados pela Cenoura, mas creio que começámos pela invasão de outros quartos da república. Começámos quase de certeza por falar muito e incessantemente, até termos menos fome de palavras e mais fome de comida. Depois saímos e fomos ter à reitoria. Ali funcionava a cantina universitária, onde regra geral se comia baratinho, desde que se jantasse cedo... Mas nesse dia estava ocupada. Festejava-se o natal entre pais e crianças, com os quais metemos conversa e junto dos quais jantámos. Não pagámos um tostão e seguimos para outra meta: festa flower power dos estudantes de arquitectura da Universidade do Porto.

A Animadora era estudante de arquitectura, mas de outro sítio; a Cenoura estaria no primeiro ano de sociologia, se não erro as contas; e eu a meio do ensino secundário. Ora bem, encenemos: uma flor aqui e ali, no cabelo e na roupa, e entramos a dançar. "Quando nos perguntarem, dizemos que sim!", e dissemos sempre que sim, éramos sem dúvida estudantes de arquitectura. Os Strokes estavam sintonizados e deixaram-nos saltar muito, antes ainda de os saltos serem induzidos. Era uma festa universitária com algum álcool disponível, houve quem nos oferecesse e o resto foi com a poupança do jantar. Era maravilhosa a nossa inocência junto daqueles grandes todos, e rimos mesmo de ânimo pleno quando à pergunta "Tens tabaco?" foi respondido "E também tenho pulmão!"

Saímos de lá tão suadas como se fosse uma noite de verão, e ainda tínhamos energia. Caminhámos na direcção da Ribeira, onde alguma coisa deveria estar aberta. Ríamo-nos muito e falávamos alto, tentando passar a euforia para quem mais fosse transeunte ou residente. Fomos dar a um bar com karaoke, onde sintonizei na cuba livre, que me deixou cantar uma, e outra, e mais outra, até fazer dueto com o rasta lá do sítio, se não me engano cantámos Bob Marley, No woman, no cry. Éramos nós e nós a cantar, ele acabou por vir para a nossa mesa e nós-meninas acabámos por perceber que os nossos corpos já estavam a precisar de outro repouso. Seguimos a pé para a R. Miguel Bombarda e só não vimos o nascer do sol porque estávamos próximas do dia mais curto do ano, e chovia.

A chuva foi lavando a cuba livre e o que mais tivesse bebido para saltar. Já não conseguia dizer uma palavra, felizmente elas estavam cansadas e foram dormir. De manhã deixámos a Animadora em modo de sono, a Cenoura voltou de transporte público para Lisboa e eu segui para o hospital. Estava tudo bem, entrei e desmaiei. Duas vezes, mas pelo menos acordava a ouvir Bob Marley e a responder a "Qual é o teu nome, Ana?" com "Inês!". Nos cuidados intensivos devo ter ouvido as palavras erradas, confundida das ideias. Calhei no lado mais pontiagudo, o lado mais sensível, o lado do coração salvo.


In many ways, they'll miss the good old days
Someday, someday

(Someday, The Strokes)

2 comentários:

Anônimo disse...

não sei como é possível gostar cada vez e sempre mais de uma pessoa como eu de ti

:)

mãe

Anônimo disse...

Quer dizer: o coração tem razões que a cuba livre conhece...
Bjs. dos cotas