domingo, novembro 28, 2004

já os Ornatos diziam... "o monstro precisa de amigos"

um dia de chuva e frio por fora e por dentro levou o monstro a pensar no conforto e no calor.
tinha já visto muitas coisas e pessoas e passado por muitas situações, mas terminava sempre tudo a ouvir “não te esqueças que és um monstro”. e a cada dia que passava o monstro tinha mais e mais frio, o seu pêlo rareava, a roupa estava toda rota, os pés gretados e calejados de tantos picos que pisava. tinha bastantes nódoas negras e duas cavidades húmidas a fazer de conta que eram olhos.
passeava pela rua cabisbaixo, o fumo corroía-lhe as cavidades faciais e fazia com que chorasse sem conseguir parar.

nesse mesmo dia de chuva e de frio, a corrente de vento passou pelo monstrinho e tentou bufar-lhe com força suficiente para não haver água a cair sobre as nuvens, já que os seus risinhos de cócegas a irritavam solenemente. mas quanto mais soprava, mais água caía do monstrinho e mais as nuvens se riam! até que desistiu e tentou parar o choro de outra forma.
“que tens para estares assim?”
“é o fumo dos dias que passam por mim”
“só os dias é que passam? e os amigos?”
“o que é isso?”
“Amigo é aquele que ama o umbigo do outro mas sem querer que os seus umbigos estejam sempre colados.”
“ninguém ama o meu umbigo! só vejo danças redondas sobre os próprios umbigos ou doisbigos muito juntinhos… se há frio dança-se, mas depois da dança há tanto calor que os umbigos todos se afastam e fica outra vez tanto frio…”
“eu não tenho umbigo, não sei, aprendi à vista desarmada…”

o frio parou um bocadinho, concentrado na conversa da corrente e do monstro, e acrescentou:
“nunca vos disseram «vou estar contigo para sempre»?”
“não” – respondeu a ventania.
“já” – contrapôs o monstrinho.
“e o que respondeste?” – perguntaram ambos.


“para o sempre todo ou só algum?...”


silêncio.

o monstro continuou então o seu caminho, olhos humedecidos pelo esforço,com um ventinho a soprar-lhe ao ouvido coisas que não entendia e um novo frio a chegar ao fundo de si.

3 comentários:

Lampimampi disse...

:/ que textinho lindo...!
*

gandhiano disse...

Só algum sempre da nossa existência, todo um sempre dos nossos sonhos. E assim nos mantemos juntos, em laços infinitos de partículas invisíveis do universo. Para o sempre todo, mesmo que seja só algum :)

Anônimo disse...

vim cá dar, de alguma maneira estranha ... gostei deste texto em especial, vejo q algumas coisas em ti continuam iguais :)
coisas boas e paz*
inês (bruxa, em outros tempos ...)