terça-feira, fevereiro 12, 2013

Sobre a mulher-propriedade

"Quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impôr à outra a sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre em tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se, pois, que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu realizar essa vontade?" (Beauvoir, 2008: 99)

Beauvoir conta-nos que, do período agrícola até à actualidade do seu ensaio, é possível interpretar um conjunto de visões sobre a mulher. Nessa evolução há um carácter relativamente estável: a mulher-propriedade sob domínio do homem.

1. A mulher que desempenhava o trabalho campestre permanente, já que ao homem cabia o trabalho ocasional de defesa, caça e pesca.
2. A mulher que se reproduzia, desempenhando um papel protector e nutritivo, podendo tornar-se autónoma mas não se bastando dessa estagnação natural enquanto espécie; a mulher dá a vida, mas o homem é-lhe superior já que é ele que arrisca a vida na guerra.
3. A mulher na visão da posteridade: o seu papel biológico vê-se subjugado ao valor da propriedade (privada) em transmissão entre gerações; a mulher que procria para criar herdeiros.
4. A mulher serva de senhores, simultaneamente reprodutora e cumpridora das tarefas domésticas, que é subordinada pela exaustão e, mais tarde, pelas instituições.
5. A mulher do mistério produtivo (na concepção e nas colheitas) e o homem que passa a superá-la no domínio da técnica, no aparente controlo sobre a natureza.

"Assim, o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem o resultado de uma revolução violenta. (...) Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe o seu destino" (Beauvoir, 2008: 118). O pacifismo (com momentos e situações pontuais de excepção) da mulher-propriedade enquanto dominada (propriedade de outrem) e da mulher que se dedica à propriedade terrena constante (trabalho doméstico, no campo, na criação dos filhos).

Venha um salto no tempo, mas recomendo que leiam a retrospectiva histórica e filosófica de Beauvoir. Passo aos dias que acompanharam o meu crescimento. Os dias em que os nascidos quando "O Segundo Sexo" foi escrito já eram adultos e, por vezes, pais. Já evidenciavam a alteração de estatuto da mulher, a emancipada que pode viver autónoma (ainda que com rendimentos inferiores aos do homem), divorciar-se, votar, cometer um crime e ser julgada como pessoa (reduzindo a imputação de género na justiça). Tudo isso foi escrito e por mim lido. O resto partiu da observação do jogo escondido, das legitimidades em acção que permeavam as relações de quem fui conhecendo.

Crescemos sob matriz judaico-cristã, tantas vezes não apenas ao nível de valores como também sob a mão prática da religião institucionalizada. A obediência era conveniente e um dos meios rápidos de a conseguir era face ao medo patriarcal da autoridade: medo do pai, medo do polícia, medo do director e até, imagine-se, medo do papão (significado do escuro, do que não vemos; já as bruxas podiam ser vistas e causavam bem menos receio). A consequência da não obediência tornava-se, assim, previsível: punição por mão grande, por voz grande, por aqui que não vislumbramos e, por isso, não podemos enfrentar.

Garantir o desequilíbrio e a falta de reciprocidade através do privilégio da parte dominante - tática imediata e eficaz. O que nunca entendi foi que tantos pensassem ser directa a relação entre medo, obediência e respeito ou educação. Pois se uma criança, crescendo em homem e mulher, aprende a ser propriedade do medo e seus detentores, como poderá emancipar-se sem fugir ao pacifismo da sua dominação? Legitimando a sua vida adulta como novo papão? Criando um matriarcado violento como o exemplo patriarcal em que cresceu ou que foi observando em quem rodeava? Simulando a violência emancipatória e continuando a legitimar, nas escondidas de quatro paredes, ser propriedade de outrem?

Não creio que a dominação homem-mulher esteja muito afastada do que se legitimou, ao longo dos anos em que cresci, sobre a suposta superioridade de adultos sobre crianças, de padres sobre praticantes e outros religiosos, de patrões sobre empregados, de professores sobre alunos, entre outras dialéticas em que a autoridade pode passar a autoritarismo num piscar de olhos e a legitimidade continua a abraçar a vida dos primeiros. Creio, por outro lado, que se a parte humana se sobrepuser à parte proprietária - a pessoa que é e cresce, acredita, trabalha e/ou estuda, vive - ganhamos nova hipótese de reciprocidade na luta partilhada do desenvolvimento. 

Aquela que se recusa a ser propriedade de outrem e até, imagine-se, que luta para não ser propriedade das suas propriedades terrenas - materiais (casa) ou de vontade do seu espírito activo (papéis que se atribui no trabalho ou activismo, por exemplo), não passa de mulher a fêmea; cresce e abandona o seu lado mais objecto no sentido do de sujeito, de algo que supera o seu imediato ou futuro previsto. Existir supera essas propriedades. Existir como mulher requer mais luta que a média.

3 comentários:

Anônimo disse...

gosto gosto gosto

:)

mãe

Anônimo disse...

Gostamos, claro; embora reconheçamos que as mulheres têm alcançado paulatinamente o lugar a que têm direito.
Beijos dos cotas.

rebelonya disse...

:)

Publicado em Femmeuary: http://femmeuary.wordpress.com/2013/02/28/about-the-woman-as-property/